DANDO SEM TER PARA DAR

Aquela tinha sido a minha segunda viagem ao exterior, e a primeira viagem à África. A mesma me surgiu por um acaso. Chegando à Base às 8h, fui informado de que embarcaria às 11h daquela mesma manhã. Como previsto, às 11h, estávamos embarcando e, às 13h, o navio zarpou com destino a Recife e, de lá, para Angola, no continente africano.

Os dias pareciam intermináveis. A ansiedade de pisar em terra firme, a cada dia em que o horizonte surgia, a esperança de ser na manhã seguinte, me fazia lembrar dos meus filhos, esposa e amigos que deixara no Brasil. Era uma nova experiência e que eu, como tantos outros, estávamos alegres por termos uma missão que muitas pessoas desejavam, nos sentíamos heróis; participar de uma missão representando as Organizações das Nações Unidas, seria um prazer, seria um privilégio para qualquer um e, ainda mais para um militar que iria ostentar uma estrela de cor azul no uniforme, sobre o peito.

Depois de dez dias, por fim...

– Terra à vista!

Foi a voz ouvida por quem encontrava-se no convés de popa. Aquelas frases imitavam a descoberta do Brasil há quase quinhentos anos.

Depois de sermos orientados por nosso comandante em como se portar, atracamos e fomos conhecer a cidade. As ruas mais pareciam de uma cidade fantasma; parecia não haver vida e os poucos edifícios que ainda tinham as suas anteparas em pé, como que por atrevimento da destruição da Guerra Civil, estavam todos perfurados por balas. Era, realmente, algo deprimente.

Toda a ansiedade que eu tinha a fim de recompor o meu uniforme com a estrela da Organização das Nações Unidas, parecia que iria pesar muito para a minha capacidade; ainda mais quando deparei com algumas pessoas, mais precisamente, um pelotão de mutilados, vítimas de granadas que foram jogadas a esmo nos campos e que inocentes eram as principais vítimas. Fiquei arrasado psicologicamente. Senti uma forte dor no peito, desprezo pelo ser humano, por sua própria degradação, na falta de respeito ao próximo. Me sentia esmorecido, debilitado.

No dia seguinte fomos destacados com o objetivo de proteger um aeroporto onde um cargueiro que saíra de Londres com farinha de trigo só teria duas horas de permanência. Depois que o avião decolou, já que o mesmo não tinha muito tempo para ali permanecer, por medo de grupos que constituem a guerrilha. Minutos após a sua decolagem, várias pessoas, famintas, aproximavam do asfalto e passavam suas mãos nos lábios, afim de que a pouca saliva a umidecesse, e passavam as mãos no chão para adquirirem a cor da farinha – pela falta da mesma – levavam as mãos aos lábios.

Cenas deprimentes aquelas, que eu não desejaria nem mesmo para o meu maior inimigo. Com tais cenas, eu não via a hora de retornar para o meu país, retornar para o meu querido e amado Brasil.

Mas eu não sabia que o pior estava por vir; ao deslocarmos para um pequeno vilarejo, que mais parecia um Campo de Concentração, onde a maioria dos seres, já que não podemos chamá-los de gente, pela própria falta de respeito pelo próximo, a cada dia eu sentia que não iria suportar. Me sentia humilhado e em certo momento tive vergonha de me chamar humano, pois me sentia triste, entediado e por não poder fazer nada. Não tinha meios ou mesmo forças, já que eu apenas estava, como tantos outros, a cumprir com um dever que não passava de uma peça teatral de países que se autodenominam de civilizados. Mesmo que não quisesse participar, por ser militar, eu estava lá, e com certeza participaria, por ordem superior.

A fome, a guerrilha em busca de poderes; poderes abstratos; poderes que não existem se não houver amor ao semelhante – mas o orgulho, e a procura de podres poderes assolam aquele miserável país, e em certo momento, ao deparar-me com pessoas que mais assemelhavam-se a esqueletos humanos, zumbis em forma de gente, faltou-me fé em Deus e eu já me encontrava perdido, um céptico.

Fiquei pensativo a mirar as mulheres. Seus ossos se sobressaiam e suas maçãs dos rostos estavam murchas quais flores em pleno verão. Os olhos pareciam embassados, sem brilhos e, nos seios murchos, quais bexigas vazias, bebês sugavam-lhes as negras pelancas. Mesmo que eu não tentasse demonstrar, chorei por dentro enquanto me perguntava:

– Deus, por quê aqueles seios não saem leite, não saem líquidos?

Eu me perguntava em forma de protesto.

As mulheres ofereciam os seios aos filhos tentando dar o líquido que não tinham, mas, tinham que ter pra dar. E foi naquele momento que eu aprendi que aquilo era uma prova de Deus para comigo, para com os homens, pois eu tive duas certezas: aquelas mulheres, mesmo com toda a miséria que ronda seu mundo, suas vidas, tinham a esperança... tinham algo ainda de maior importância que nutre e dá vida ao ser humano; tinham algo a ofertar aos seus filhos. Não riqueza, tinham algo de melhor e mais sublime do ser humano, tinham o amor!

Mesmo com o meu peito a sangrar de todas aquelas cenas degradantes que eu lá tinha presenciado e que ficaram marcadas na minha mente, eu jamais imaginei que teria coragem de relembrá-las. Mas, comecei a refletir, não sobre a destruição, e sim, sobre aquelas ricas mães...

Assim que desembarquei no Porto do Rio de Janeiro, uma vez que havia me livrado daquele pesadelo, daquele inferno em vida, só então consegui traçar este singelo rascunho, como que em homenagem a todas as mães, pois a única coisa boa que eu me lembro, e que valeu a pena, foi ter presenciado os atos de amor daquelas mulheres em todas aquelas circunstâncias e é este mesmo rascunho que eu tenho a oferecer àquelas heroínas, além do meu RESPEITO ÀS MULHERES QUE, MESMO A SANGRAR, O MUNDO AINDA PODE RECEBER SEUS GESTOS DIVINOS!

Este trabalho está registrado na Biblioteca Nacional-RJ

carlos Carregoza
Enviado por carlos Carregoza em 22/11/2006
Código do texto: T298015