SAINDO DO SOFÁ...
Ainda me lembro daquela sala, o cheiro, os ruídos, o gosto do jiló frito pela dona Zélia. O corredor que dava acesso à cozinha com chão revestido de pastilhas coloridas. A televisão com celofane sobre a tela para visualizar uma cor além do preto e branco. A vitrola ABC A Voz de ouro, o luxo da época. Lembro do Pianinho de brinquedo, da hering, que ganhei de Natal junto com a boneca Tutuca, vestida de baianinha, que foram presentes de meu pai. Lembro do doce mais doce do abacaxi e do azedo bem azedinho da pitanga que dava um arrepio gostoso...
Quase quatro décadas me separam destas lembranças e ainda lembro nitidamente dos detalhes da casa onde passei minha infância. Quando eu dormia no sofá, alguém me pegava no colo e me conduzia à cama. Eu mesmo sonolenta, identificava quem me levava, pelo formato do ombro, se fosse mais ossudo, era meu pai, se fosse mais arredondado, meu irmão mais velho. E eu adorava ser levada no colo para o aconchego gostoso da cama, e depois, sentir o cobertor sendo estendido por cima de mim. O cheirinho da manhã se revelava no aroma de café fresquinho da minha mãe, do cigarro de meu pai acompanhado de seus pigarros e cuspidelas. Às vezes, eu ficava reparando nele, no quanto ele era fácil de se definir. Era só o meu pai. Sem muitas palavras, sem muitos sorrisos. Apenas um observador, olhar perdido em pensamentos que de tão silenciosos, incomodavam a minha alma. Para eu me vingar de seu sombrio silêncio, o perturbava pedindo para que ele deixasse eu passar o pente preto na sua careca que continha ainda alguns teimosos fiapos de cabelos que ele penteava com um capricho de quem cuida de uma relíquia. Esses momentos foram únicos, mágicos e passageiros. Eu comecei a ter que me levantar do sofá e ir para cama com minhas próprias pernas, não dava mais para fingir que eu estava dormindo para que alguém me levasse. Se eu permanecesse alí, o problema seria meu e de mais ninguém. Eu percebi que crescer dói. Pela vida afora, descansar e esperar alguém nos conduzir, é cômodo. Levantar e seguir os passos com nossas próprias pernas, é o caminho mais sábio, pois devemos optar por seguir para um conforto melhor, ou permanecer no sofá sentindo dores nas costas.
Tenho refletido muito sobre as atitudes dos seres humanos, e em particular, alguns mais próximos com os quais, tive a oportunidade de conviver. Concluí que na maioria das decepções que tive com eles, eu que fui culpada porque agi como a menina que ficava no sofá fingindo que estava dormindo, para que alguém a levasse para cama e a protegesse do frio.
1ª Publicação em: 10/01/2009 00:21:44