VIAGEM . . .
A lua infiltrou-se discreta e mansamente na cortina e sentou-se á minha cabeceira.
Densa claridade prateada iluminou contornos familiares e senti-me vagar em plenitude. Prometeu levar-me em viagem surpresa à quadra distante e feliz da minha infância, quadra em que vive a pureza dos olhos de criança, olhos quais bolinhas coloridas, simples sem indagações sobre o que será o amanhã.
Despi-me de fantasias, preocupações e de tudo que ainda me
prende ao ontem, buscando sair do opaco para a luminosidade, e
ser feliz...
Abri gavetas de lembranças, colhi emoções e saudades, guardei
na caixinha dourada em que sempre as coloco com carinho, e
segui a lua.
... Pouso serenamente no quintal de minha casa antiga casa...
(?)...
...
Sento-me no chão de terra e revejo as formiguinhas em fila no seu
trabalho de carregar folhas, a se cumprimentarem naquele gesto
de fineza e solidariedade.
Um passarinho pousa na cerca de arame e canta feliz a saudar- me.
Linda homenagem!
Sob o “pé de carambola,”vem-me a esperança de colher as moedinhas plantadas por minha irmã que as rega com tanto carinho todos os dias... Não as encontro, levam tanto tempo para brotar!...
As limeiras floridas exalam perfume embriagador. Apenas flores e flores, e nem uma fruta para mamãe que gosta tanto de limas!...
Armo a gangorra na jabuticabeira ainda adolescente e frágil: uma
corda, uma haste de madeira, um nó bem apertado, um impulso e
eis-me estatelada no chão a berrar por socorro:
- Acode, gente, ai, ai, ai, estou sem fala!...
À tarde, após o banho, muito arrumadinhas e cheirando a sabonete,
minha irmã e eu sentadas à porta da rua a aguardar as irmãs
que chegavam da escola para o jantar. Eu até às vezes ia à escola, mas
não tinha ainda idade para matricular-me ( ai como adorava as letras que
já desenhava com capricho e prazer! )
Às vezes jogávamos caracol riscado no passeio com carvão da Alfaiataria, mas mamãe não gostava, precisavamos ficar limpinhas para o jantar.
Nas manhãs de sol, sempre eu esperava a mulinha com os dois latões de leite a bater de porta em porta e quando chega à nossa, mamãe recolhe o leite e oferece uma caneca de café quentinho ao leiteiro que fica muito alegre e falante...
Minhas bonecas que falam “mamãe” são a alegria de minha vida! Converso com elas, ensino-as a cantar, rezar, costuro-lhes vestidinhos de chita , dançamos e estou muito feliz!
( ??? ... )
Encontro-me, como num passe de mágica, em Diamantina.
Abro os braços para estreitar a cidade que alegre me sorri. A caixinha de sonhos é novamente aberta e deixo-me levar.
Tudo tão diferente nesta terra de meu pai!...
Quantas igrejas, quantas festas, quantos foguetes, que gente mais alegre!...
Na missa da madrugada, única que mamãe pode ir por causa de tantas crianças , eu mais durmo do que rezo à espera do “bolo de arroz” quentinho vendido no adro da Sé.
O Grupo Escolar, os teatrinhos, os jogos de maré, os livros trocados entre colegas, as férias em Curralinho visitar a querida Vovó, sentir o ritmo de sua cadeira de balanço a embalar saudades, os novos primos, as brincadeiras, a felicidade...
O piano, ah! O nosso piano querido, o violino de papai... De repente percebo ao longe a “adolescência”espreitando;
quero afugentá-la e preservar esta quadra feliz de criança que o
tempo se esqueceu de levar.
Carrego minha caixinha de lembranças e emoções guardadas para
sempre em meu coração, lembranças tatuadas em mim e que jamais se
apagarão...
Desperto feliz com o sol que veio dar-me um beijo no rosto
a dizer-me : - BOM DIA !!!...