DE VOLTA PARA CASA?

Suave como uma pluma, o Boeing, pousou suas setenta e tantas toneladas na pista principal do aeroporto dos Guararapes. Era o final do voo que começara sete, quase oito horas, atrás no aeroporto de Lisboa. Este pouso também punha um ponto final, melhor dizendo, uma reticência na minha viagem começada trinta e três dias antes.

A sensação de voltar a um local conhecido, desde sempre, é como entrar na própria casa, mas a realidade é bem outra. Eu ainda não tenho casa. Eu ainda não tenho para onde voltar. Melhor dizendo, falta-me a residência que é o complemento do domicílio. O objetivo agora é, ainda que sem pressa, definir o local dessa residência. Para isso, tal qual na gastronomia, vou experimentar locais.

Cidades, povoados, na rua ou no sítio, até que, pela razão (com um pouco de emoção) seja esse local escolhido. Enquanto isso, muita roupa suja para ser lavada. A chuva no Recife colocou, literalmente, uma água bem fria na minha pretensão de refazer a mala e sair em busca do local ideal para viver.

Enquanto a roupa não seca, estou ocupando a casa de minha cunhada que, além de generosamente oferecer o abrigo, ouve as histórias da viagem começada na manhã do dia 29 de março, partindo, por avião até o Rio de Janeiro; de navio até Veneza; por terra até Roma, por avião a Paris e depois Lisboa.

Por maior que seja o nosso entusiasmo ao dissertar sobre o dilúvio de fotografias, a narrativa fica sem a emoção que somente a tridimensionalidade e presença física, dos locais e objetos, podem proporcionar.

Depois de um bom copo d’água gelada, comecei...

A partida:

Recife/PE. Madrugada do dia 29 de março de 2011. Saí de casa com a cidade semiadormecida com o propósito de evitar o trânsito caótico dos dias úteis. Cheguei ao aeroporto com duas horas de antecedência. Meu voo saiu no horário previsto e, navegando em céu de brigadeiro, chegamos ao Galeão na hora marcada.

Em cumprimento à programação da viagem, fizemos o “city tour” na cidade do Rio de Janeiro, pelos cartões postais de sempre. Vimos, na área do porto, os barracões das escolas de samba que pegaram fogo dias antes do carnaval. Depois do almoço em Copacabana, fomos levados para embarcar no navio.

O gigante branco, com seus quinze andares, estava nos esperando de pé, sobre as águas da Baia de Guanabara. Ainda em terra, o caos. Instalado num velho armazém das docas, o que eles batizaram com o nome elegante de “ESTAÇÃO MARÍTIMA DE PASSAGEIROS DO RIO DE JANEIRO” não passa de um amontoado de cadeiras, (insuficiente para o número de pessoas), onde funcionários atendem aos passageiros que são guiados para a fila interminável.

Lentamente, entregamos o passaporte com o comprovante da passagem e recebemos o cartão magnético que, também é a chave da cabine onde iriamos residir pelos próximos vinte dias.

A lanchonete da Estação estava fechada e a água que conseguimos foi da torneira com acentuado gosto de cloro. (Pelo menos fora tratada contra microrganismos).

Três apitos breves indicaram que o prático estava a bordo. O MSC Musica, navio com 298 metros de comprimento e que bebe 33,5 toneladas de combustível, lentamente afastou-se do cais. O movimento das hélices, pelo fenômeno da ressurgência, alterou para cor de barro, as águas escuras da baia. Passamos ao largo do Pão de Açúcar e seguimos em direção à Baia de Todos os Santos, depois que o prático entregou o comando do navio.

Um apito longo informou a todos que a partir daquele momento, estávamos por nossa conta.

Navio de passageiros é um hotel cinco estrelas que se movimenta. Há diversão e locais para todas as atividades que se imaginar.

Ambientes finamente decorados, pessoal amável e sempre disponível. Os dias passam lentamente e o movimento dos hóspedes nas piscinas, bares, restaurantes, incontáveis salas de estar, áreas de laser, teatro, biblioteca, salão de jogos, etc. é um permanente convite para conversas amigáveis e o entendimento entre pessoas de origens, costumes e idiomas os mais diversos. No dia seguinte, navegávamos muito próximo da costa e os albatrozes fizeram a alegria dos seres humanos, pegando, em pleno voo, pedaços de pão das mãos de quem tinha coragem de ficar segurando ou mergulhando para apanhar os pedaços atirados ao mar. Mais de vinte animais acompanharam o navio até o anoitecer.

No mesmo dia em que zarpamos do porto do Rio de Janeiro, em cumprimento às normais internacionais de segurança, participamos do treinamento para casos de emergência em que fosse necessário abandonar o navio. Aprendemos a colocar o colete salva-vidas, a acioná-lo e principalmente a identificar as rotas de fuga e o escaler que deveríamos ocupar.

No dia 31 de março, Salvador/BA nos acolheu com o bom humor que justifica o jargão: “Sorria, você está na Bahia!” estivemos nos cartões postais da cidade com destaque para o Museu Náutico e almoçamos as delícias da culinária baiana, decantada por Jorge Amado e apreciada por todos aqueles que têm a oportunidade de experimentar. No final do dia, repetiu-se o ritual da partida.

No dia 02 de abril, atracamos em Fortaleza que demonstrou, mais uma vez, que o Brasil ainda é o melhor lugar do mundo. Gente simpática, belezas naturais iluminadas pelo sol generoso e acolhedor. A beleza do lugar se reflete no comportamento das pessoas que não medem esforços para que o visitante se sinta “em casa”.

O teatro José de Alencar estava fechado, mas a imponência da sua arquitetura enchia a praça onde levas de turistas se misturavam aos nativos. O Mercado Central, passagem obrigatória, foi o último ponto visitado. Como toda cidade brasileira, Fortaleza sofre os efeitos do descalabro e da falta de vergonha dos nossos governantes que, sabedores da impunidade que lhes garante a lei fabricada por eles mesmos, utilizam os cargos em benefício próprio ou de seus comparsas. A falta de serviço público de transporte, associada às péssimas condições das vias entregues ao tráfego, faz com que os habitantes locais percam horas em engarrafamentos quilométricos motivados pelo excesso e veículos particulares em circulação.

Como não poderia deixar de ser, ficamos presos no engarrafamento em frente à Praça do Ferreira. Numa das esquinas tem uma farmácia que disponibiliza balança para atrair clientes. Um desses, gordo como uma rolha de poço, subiu na balança cujo ponteiro deve estar sem amortecedor porque, ao ser acionado abruptamente, ficou fazendo movimento pendular por bastante tempo, até estacionar nas casas dos três dígitos.

A cena hilariante, foi motivo de muito riso que, graças ao veículo estar com as janelas fechadas por conta do ar condicionado, não foi notado pelo protagonista da cena bizarra.

Repetiu-se o ritual de desatracação depois que uma família retardatária entrou no navio, sob apupos, dos que estavam na amurada. Lentamente, o continente desapareceu no horizonte iluminado pelos últimos raios do sol, e num breve ocaso vermelho, o dia se morreu.