LIÇÃO DE VIDA...
A turma do alojamento estava inquieta esperando a chegada do novo “inquilino”. Já sabíamos que se tratava de um subtenente egresso de Curitiba. O alojamento de que falo era a dependência que servia de acomodações para os subtenentes e sargentos do 6º Batalhão Especial de Fronteira, uma das mais antigas e tradicionais Unidades da Amazônia, localizada na cidade de Guajará-Mirim, Estado de Rondônia.
Éramos doze graduados, todos alojados “solteiros”, sendo quatro cariocas, três gaúchos, dois paraibanos, um mineiro, um baiano e um pernambucano. Todos haviam sido transferidos para Guajará-Mirim, mais resolveram deixar as respectivas famílias em suas cidades e de origem, a fim de evitar as despesas de locomoção. Era uma forma de se receber uma indenização pela transferência, mas não gastá-la com traslado da família e respectiva bagagem.
Houve um pequeno atraso do vôo do nosso subtenente, que só chegou quando todos nós já estávamos almoçando. Não houve aquela recepção que sempre fazíamos para aqueles que iam “morar” no alojamento - também conhecido como “o condomínio dos inocentes”; as apresentações foram sendo feitas individualmente e alguns companheiros tiveram impressões diferentes sobre o novo colega. Para nosso infortúnio ele era mais antigo do que o único subtenente, um boa praça, que já estava entre nós. Isto é, teríamos a partir daí um novo líder. E no Exército, antiguidade é posto.
Quando do primeiro contato com todos reunidos, o recém-chegado subtenente Hermes não se fez de rogado: disse que gostava de respeito e de ordem; que iria cumprir os horários de apagar as luzes, desligar televisão, etc, e que não permitiria algazarra no alojamento. Foi uma ducha fria. Todos já estávamos habituados com a folga que prevalecia há muito tempo. Mas ele não sabia em que estava se metendo. Nessa noite fomos dormir mais cedo do que o costumeiro. No dia seguinte, logo durante o café, começou o cochichado. Como é que iríamos aguentar aquele cidadão dando ordem no alojamento, coisa que nunca acontecera. O Hermes era um “brancão” de aproximadamente l,80m, bom porte físico (mas com uma barriguinha já bem pronunciada), elegante, mas metido a “caxias”, fato que o tornava um sujeito antipático. E a verdade é que a sua primeira intervenção não foi das mais felizes. Apenas os gaúchos o defenderam, pois os cariocas e outros começaram a duvidar daquele “atrevido” sulista.
Na primeira sessão de educação física de que participou conosco - uma corrida de aquecimento, seguida de alongamentos e posterior natação na piscina - o nosso homenageado, na tentativa de fazer graça junto aos demais companheiros, mergulhou na água antes de todos e em seguida começou a se debater como que fingindo estar se afogaNdo. Os demais participantes, ainda fora d’água, censuravam aquela atitude do companheiro, principalmente por ser ainda novo entre nós, assim como por ser o mais graduado daquele grupo. O certo é que o afoito nadador estava era se afogando mesmo, sendo salvo depois de haver engolido boa quantidade de água.
Bem, a partir daí, alguns chegaram a começar a duvidar da masculinidade daquele representante paranaense, justamente pela “desmunhecada” da natação. Ele andou meio triste durante alguns dias, não encheu mais o saco de ninguém do alojamento e passou a “residir” fora durante os fins de semana. Ninguém o encontrava nos feriados, sábados e domingos. Inúmeras foram as conjecturas feitas pelos colegas, tentando descobrir o paradeiro do nosso subtenente. E ninguém se atrevia a perguntar-lhe onde estava se “escondendo”. Foram vários meses sem que nenhum de nós soubesse o que fazia o Hermes durante esses dias ausentes do “condomínio”. Sempre que ele tinha oportunidade, censurava e/ou aconselhava os colegas pelos excessos que praticavam nos fins de semana, justamente por estarem longe de suas famílias. Essas atitudes, muitas vezes infelizes, geravam uma antipatia que vinha crescendo a cada investida que fizesse. Entretanto, raramente alguém o ouviu se referindo à sua própria família. Demonstrava ser religioso, mas pouco se via o Hermes em alguma cerimônia religiosa. Da mesma forma, dificilmente era visto em alguma festinha da turma. A realidade é que ele participava apenas das obrigações da caserna e pronto.
Passaram-se os meses, e certo dia, após uma reunião dos subtenentes e sargentos com o comandante, o Hermes pediu para dar um aviso, que na realidade era um convite para que todos nós fôssemos visitar um asilo de velhinhos que ficava nas proximidades do quartel. Adiantou que o dia seguinte - um feriado - era Dia do Ancião, e que os velhos ficariam muitos contentes com as nossas presenças. À noite, no alojamento, os colegas começaram com um tititi, afirmando que talvez fosse a nossa oportunidade de conhecer realmente o que fazia o nosso líder fora do quartel.
O Dia do Ancião amanheceu chuvoso, acompanhado de um vento frio oriundo dos Andes, fato que provocou certo atraso de nossa parte para que cumpríssemos a “boa ação” que o dia nos proporcionaria.. O pessoal do “condomínio” compareceu em peso, mais na tentativa de desvendar o mistério do Hermes do que realmente praticar o gesto de solidariedade com os velhinhos. Logo na entrada do Asilo fomos recebidos por um grupo de senhoras da comunidade, que se apressou em nos agradecer as presenças, bem como enaltecer o filantrópico trabalho que vinha realizando o subtenente Hermes junto àquela instituição, da qual já era benemérito. E aí o mistério se desfez. A tarefa principal do nosso chefe era fazer o asseio dos velhinhos durante os finais de semana. Desde o banho até o corte de unhas, etc. Frize-se, por opção própria.
No dia seguinte, na primeira oportunidade, em conjunto, nos colocamos à disposição do Hermes para ajudá-lo nas suas tarefas de fins de semana, mas ninguém foi visto ou testemunhou a presença de quaisquer colegas nas proximidades do Asilo.
Também, ninguém mais se interessou pelo paradeiro do Hermes, nosso líder.
Guajará-Mirim, RO, Fev 1987.