VENDO MELHOR - CRÔNICAS HISTÓRICAS
O sol está se pondo mais cedo. As noites de inverno são deliciosamente mais frias e mais longas. Estamos em fins de junho e sempre volto para casa mais cedo que o habitual. Havia no caminho de volta uma delicada flor amarela, desta dos campos que nascem somente na primavera, mas que estava esplendidamente linda sob o brilho do sol do fim do dia. Hoje quero chegar em casa a tempo de ver o pôr-do-sol bem lá do alto, na minha cabana do sossego enquanto ninguém me encontra aqui. Minha cabana fica no alto de uma montanha escondida entre as árvores e logo abaixo mais umas oitenta casinhas de gente, que como eu vive por aqui sem muito que ter ou fazer. Temos nossas plantações e nossas coisinhas de casa, muito simples, em nada comparado ao luxo das casas da cidade. Mas também lá o luxo nunca era para nós! Sinhá sempre deixava só o resto pra gente. Escravo nunca tinha um “diazinho” sequer de folga. Depois que o trabalho das minas acabou, quem não ficou livre sofre as dores quase em dobro. Não tinha mais como ficar naquele lugar. Era a liberdade ou a morte. Já estou velho e não consigo mais ficar trabalhando dia e noite. E sinhô Joaquim Cassiano ainda me dava serviço de noite. Eu sei que sou habilidoso mesmo em consertar coisas, mas não agüentava mais.
Cheguei aqui já faz mais de um mês. Aqui no São João Del Rei ninguém me incomoda. A Benta me traz comida todo dia. Ela mora logo abaixo. Já faz mais de um ano que vivo aqui nesse quilombo. Eu planto minha roça e a gente troca os produtos por aqui mesmo.
Esse caminho é muito bonito. Lembra um pouco o Ouro Preto, de onde consegui fugir junto com mais dois amigos naquela noite em que meu dono me deixou montando umas cadeiras. Eu estava no fundo da casa e não mexia com nada de barulho. Nem prego nem martelo. No silêncio da madrugada, enquanto ele dormia, meus companheiros me chamaram. Nunca tinha passado pela minha cabeça de fugir um dia, mas quando eu percebi a calma de tudo, eu fugi com eles. Era a oportunidade da minha vida, dessas que só acontecem uma vez. Eles ainda estão por aí. Um deles era escravo numa mina de onde ainda se pode tirar ouro, e o outro ficava numa lavoura lá perto. Eu os conhecia porque eram eles que traziam os alimentos no lombo de cavalo para a cidade. Nas minhas atividades de consertador de tudo, a gente sempre se esbarrava.
Aqui do alto desses morros, lá bem longe a gente consegue ver os sinais da vila. Fico pensando em quantos ainda estão sofrendo no cativeiro e imagino como deve estar os companheiros que ainda estão escravizados. Penso que se um dia eles não vão me encontrar aqui e destruir nossa paz, mas enquanto isso eu vou vivendo bem minha vida. Trago no corpo as marcas dos castigos, dos troncos e das pancadas. Na alma, trago as marcas da dor irreparável que a desumanidade dos homens, que a maldade gratuita nos infligem.
Nossa fuga foi fantástica. Não sabíamos para onde ir. Íamos apenas. Passamos duas noites debaixo de uma grande pedra encravada na serra, de tanta chuva. No segundo dia tive uma febre muito forte e pensei que morreria ali mesmo. Mas não fiquei triste, morreria livre ao menos. Entregaria minha alma do mesmo jeito que nosso Pai do Céu havia me dado: livre. Mas não foi daquela vez. Subimos morro e descemos caminhos. Chegamos em fazendas e trouxemos mais conosco. Um mês depois estávamos aqui e hoje somos uns duzentos. Poucos, mas o lugar não é bom pra muita gente. Apesar de escondido e por detrás de muita serra, é perto da cidade. Quando cheguei não tinha cem pessoas ainda. A Benta foi uma das que me acolheu. Cheguei aqui cansado, com muita fome e fraco. Já não tenho mais a vivacidade da juventude, e nos meus sessenta e cinco anos precisei de um bom tempo para ser útil aos meus irmãos. Ela se acostumou a cuidar de mim e seu companheiro me ajudou na construção da minha cabana. Hoje além dos alimentos, sou eu quem faz os móveis e conserto tudo por aqui. Mas eu gosto da terra. Gosto do cheiro da terra e da vida que brota dela.
Chego na cabana, com a alma lavada e a visão do paraíso próxima de mim. Mesmo apesar do defeito no meu olho, fruto de um castigo de chibatadas que eram para ter sido só nas costas, mas acabou atingindo meu olho, estou vendo melhor o mundo. Vejo o mundo livre e consigo entender que aqui somos todos iguais. Na porta, assentado e me esperando sossegado vejo Bernardo. Ele é um forro e de vez em quando vem nos visitar. Fica uns dias conosco e traz novidades do comércio, notícias e vem ver como estamos. Sorrindo, ele me mostra um papelzinho e diz que eu tenho muito valor. Como não conheço as letras, ele lê para mim o cartazinho que diz que eu sou procurado como negro fugido. Procura-se o João da Nação, escravo de Joaquim Cassiano. Ainda diz que sou velho, habilidoso e defeituoso no olho esquerdo. A recompensa será boa. Faço cara de preocupação e Bernardo, sorrindo diz: fica sossegado, aqui ninguém se importa com fortuna não.