Jorge, o andarilho
Jorge é assim. Ele parece ter o dom da ubiquidade. Às vezes o vemos andando pelo bairro depressa e a pé. E dali a pouco, se estamos de ônibus ou automóvel, já o vemos de novo em outro lugar da cidade, caminhando, parando, pedindo... Não é alto, não chega a ser gordo, é bem moreno e seus cabelos já estão um pouco grisalhos. Anda sempre maltrapilho exibindo sua pobreza. Caminha, caminha com a mão direita afastada do corpo à semelhança de uma asa aberta, o que certamente gera riso dos maldosos.
Conheci-o há alguns anos, talvez uns vinte se a memória não falha. Jorge fazia supletivo; era meu aluno e de vez em quando tomávamos café nos intervalos. Conversávamos sobre aulas e sobre amenidades. Era um jovem procurando resgatar o tempo que perdera.
Anos e anos se passam, os alunos se vão, alguns ficam em nossa memória. Jorge ficou; tanto ficou que me espantei, quando, em casa, alguns anos depois, vejo-o em meu portão, sem saber que seria atendido pelo velho amigo.
- O senhor é o senhor Walter, né?
- Como vai, Jorge?
- Pois é, o Ferreira agora vive sempre embriagado. O Ferreira, lá do curso. Lembra dele?
Ferreira fora o nosso diretor, e bem recentemente tínhamos mantido calorosa conversação. E não tinha nada que denunciasse o vício do álcool. Foi o bastante para que eu entendesse que Jorge viajava... Depois, soube que ele passara tempos em um hospício e voltara à vida normal, como louco manso, que ele é.
Desde aquele dia, Jorge se tornou presença quase diária em meu portão. Às vezes, estou lendo, quando toca a campainha e lá vou eu ouvir alguma conversa. É bom dizer que meu amigo é por demais exigente. Se quer café, não aceita trocar por leite ou refrigerante. Se demoro em preparar-lhe o que pediu, costuma ir embora, andando, asa ao vento, esquecido de mim. Uma desfeita, que recebo sem mágoas.
Outro dia, vi Jorge na televisão. Uma tevê local resolveu tirar vantagem dos “loucos” da cidade. Como Jorge está em todas, foi flagrado. Era época da Copa do Mundo, ele não tinha assistido a quase nada, mas se lembrou da cabeçada que Zidane deu em Materazzi e disse que foi merecida porque o italiano bebia muito. No final, deixou o repórter perguntando sozinho e foi caminhando. A câmera o pegou, na sua trajetória sem destino...
No dia seguinte, quando o vi, dei os parabéns pela entrevista. Disse-lhe que muita gente da vizinhança tinha assistido e vi seus olhos brilharem diante de meu elogio. Descobri que Jorge tem lá suas vaidades. E o imaginei vinte anos antes, lutando por aprender mais um pouco. Talvez pensasse em bater no peito e dizer: eu venci. Não foi possível. A vida levou-lhe muito da razão, mas conservou-lhe o caminhar pra lá e pra cá, pedindo, falando coisas desconexas, mas nunca fazendo o mal. Jorge, meu amigo, caminhe, caminhe, mas sempre pelas calçadas. Às vezes, noto que você se esquece de que as ruas são das máquinas velozes...