Não existem assassinos no Paraíso
Depois de tantos anos, ainda não me acostumei com o que os meus olhos veem, com o que minhas mãos tocam e os demais sentidos tão bem percebem.
Ao contrário do que alguns pensam, – e são muitos –, a experiência com a morte não me tornou fria e insensível. Ainda me emociono. Ainda consigo me ver na pele de uma mãe que perdeu seu filho, de alguém que perdeu um ente querido.
Meus pés tocam o chão lamacento.
Parece que estou no meio de um pântano.
Mata fechada.
Olho para uma nesga do céu plúmbeo e vejo o voo de alguns abutres. Já sentem o cheiro inconfundível do corpo em decomposição.
Aves de rapina.
Aves de mau-agouro.
Ali, observando aquela cena de mais um crime, penso em minha infância e nas aulas de religião. Especificamente veio-me à memória uma aula em que um padre dissertava sobre o perdão. E penso quão difícil é perdoar. Sobretudo perdoar alguém que tira uma vida, alguém que simplesmente ceifa de outro seu bem mais precioso. Eu não conseguiria perdoar. Sou humana demais para isso. Humana demais para aceitar que devemos perdoar. Mas admiro as pessoas que conseguem perdoar. Admiro e respeito.
Eu consigo ver apenas a treva nos olhos do assassino. E isso quando é possível prender um assassinato, fazer com que a justiça seja feita.
Quando optei por ser policial meus colegas de faculdade, no curso de Direito, mal podiam acreditar. Fui uma aluna brilhante. Seria, decerto, uma das melhores advogadas da área criminal, mas algo me angustiava de forma assombrosa. Era como um esqueleto que se escondia no armário e saía todas as noites para me assustar. Não raras vezes tambérm aparecia durante o dia. E me atormentava da mesma forma. Eu pensava que jamais seria capaz de defender um assassino. Jamais aceitaria lutar por alguém que havia tirado a vida de outra pessoa. Não sei se ponderei o suficiente, mas abri mão daquela carreira com possibilidades e resolvi ser policial. Fui à luta. Especializei-me, pois não queria ser apenas um policial que estivesse na linha de frente, ou melhor, na linha de tiro. Eu queria investigar, solucionar, descobrir quem era o assassino. Não foi fácil. Para as mulheres nunca é. Mas eu consegui o respeito de todos, pelo menos dos que me interessavam, e estou aqui, seguindo a trilha, buscando pistas, analisando o cenário de mais um crime.
“Do pó vieste. Ao pó retornarás”... E é no pó que estão as evidências. No pó, nas cinzas, nos corpos. Os corpos também falam quando não mais tem em si o sopro da vida. Eles tem sua linguagem própria e o meu trabalho consiste em interpretar essa linguagem, dar voz a quem já não pode falar.
E há muitos corpos. Todos os dias. Corpos espalhados pelo chão como se fossem flores. Mas não há poesia nessas cenas. O que há são dores, perguntas, desolação. É uma cena que se repete todos os dias, todas as noites, sem escolher hora, sem escolher lugar, sem escolher classe social ou qualquer outro fator que diferencie ou iguale as pessoas. Na morte, todas são iguais.
O meu trabalho é fazer com que as provas possam identificar o assassino e que assim ele pague pelo que fez. Mas é complicado. É muito complicado. A violência está entranhada nas grandes e pequenas cidades. Não há mais tranquilidade no olhar das pessoas, não há confiança de que o poder público possa resolver ou pelo menos amenizar um pouco de toda essa violência que explode em ruas, becos, avenidas. Essa é a fotografia em preto e branco que vejo todos os dias. Digo preto e branco porque há muito tempo deixei de ver as cores nesses episódios. Há muito tempo acostumei a ver somente duas cores em cada cena de um crime. É como se fosse um mundo sem cor, totalmente disforme como a personalidade desses assassinos frios.
Entretanto, eu preciso, tenho que acreditar ser possível, um dia, as coisas melhorarem. Creio que um dia o lobo mau não sairá mais da floresta para atacar Chapeuzinho Vermelho e sua vovozinha. E o mundo está repleto deles. Principalmente daqueles que atacam mesmo as crianças. E são esses os tipos mais sórdidos, mais desumanos.
Voltando ao cenário que me espera, procuro na lama pistas que possam me levar ao autor de mais um crime. O corpo de uma mulher repousa no meio do mato. Não é qualquer pessoa que consegue olhar e ficar insensível. Geralmente eu consigo separar bem as emoções, mas é uma luta diária, um sofrimento lancinante que me atinge no fundo da alma. Talvez por isso eu tenha optado por não me apegar a ninguém de forma intensa. Meus pais já faleceram. Sou filha única. Não me casei, nem tive um relacionamento que ultrapassesse a barreira dos quatro meses. Os homens que tive não aguentaram a barra. Melhor assim. Não lido bem com romances reais. Melhor, sempre melhor, os da ficção. Ultimamente tenho evitado relacionamentos amorosos. São muito complicados. Vivo sozinha. A única companhia é o meu gato. O único que não reclama do meu trabalho.
Olho novamente para o céu nublado. Começa a chover e isso não é nada bom para o meu trabalho. Terei que parar um pouco. Volto para o carro, um abrigo para a tempestade que cai violentamente. Quando eu terminar de analisar a cena do crime ele entrará para as tais estatísticas. Só me pergunto o que estão fazendo realmente para diminuir os números de homícidios nessa cidade. Aliás, aqui está parecendo terra sem lei, o velho oeste. Por qualquer motivo alguém tira a vida do outro. E assim vão entrando para as estatísticas. Números e mais números. O que eu gostaria era que os representantes do povo estivessem presentes nessas cenas de horror, ou quando a polícia tem que chegar a uma mãe ou a um pai e dizer que sua filha, como essa que aqui jaz, está morta, que foi assassinada de forma brutal. Mas eles, os tais representantes do povo, não estão aqui. Nessas horas eles estão em seus gabinetes, no ar condicionado, no conforto para os seus corpos. E eu tenho outros corpos para analisar.
Finalmente, o que penso é que não existem assassinos no Paraíso. Eles estão sobre a Terra.
Rita Venâncio.