Ela saía todas as tardes
Ela saía todas as tardes
Ela saía todas as tardes. Sempre no mesmo horário: às 16:00 hs. Pontualidade britânica.
Nunca repetia a mesma roupa. Estava sempre elegante. Usava saia, de cores discretas e variadas, comprimento pouco abaixo dos joelhos, blusa de seda, sapatos Anabela, meia calça. Os únicos adereços eram um par de brincos, um colar de pérolas – genuíno –, presente do marido, e a aliança de casamento.
O marido chamava-se Rodolfo, homem de meia-idade – aliás os dois eram da mesma idade –, pequeno empresário, dono de uma floricultura. Não tiveram filhos, por absoluta e mútua escolha. Há muito que o mundo não era mais um lugar seguro para colocar filhos. Melhor assim. Sempre que pensava no fato de não ter tido filhos, ela lembrava da última frase dita pela personagem de Brás Cubas, no romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis: “... – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Palavras amargas? Não, realistas.
Ela, Ana Amélia, era escritora. Mulher discreta, tinha poucos amigos. Escrevia em casa, sempre no notebook. Talentosa em sua arte, havia publicado cerca de dez livros, distribuídos entre romance e poesia. Avessa a entrevistas, considerava-se uma reclusa. Identificava-se muito com o jeito, também recluso, do escritor Dalton Trevisan, o vampiro de Curitiba. O bruxo do Cosme Velho e agora o vampiro de Curitiba. Vício de escritora. Era fascinada por pinturas dos séculos XVII, XVIII e XIX. Não gostava muito de arte moderna. Dizia que as pinturas eram apenas umas telas borradas. Para Ana Amélia, a pintura devia retratar pessoas, paisagens, objetos. Mas tinha lá suas exceções. Gostava da arte de Frida Kahlo e de Pollock.
De poesia era aficcionada por haicais, pequenos poemas que captavam nos breves versos uma essência particular. Ela os via como uma deliciosa fragrância em minúsculos frascos de perfume. Implicava com a poesia concreta. Na época da faculdade uma professora de literatura brasileira, a melhor que tivera, havia comentado que realmente Ana Amélia não se deixava levar pelo Concretismo. Nas aulas de literatura dava preferência aos poetas românticos e aos simbolistas. Tanto na literatura brasileira quanto na portuguesa. Foi na faculdade que conheceu a escrita poética de Florbela Espanca e por ela ficou um longo tempo absorvida. Uma bela viagem ao passado.
Ana Amélia amava escrever. E escrever era um ato extremamente solitário. Cabia nela como se fosse uma luva, pois Ana nunca foi muito chegada às pessoas. Pessoas a deixavam apavorada. Até chegou a fazer análise, apenas por alguns meses. Depois desistiu. Dizia que sua terapia era escrever. E ler. Lia muito. Alguns jornalistas chegaram a dizer que ela era excêntrica justamente por ser reservada. Se apaixonava com total entrega à escrita. Foi assim quando descobriu os haicais e começou a compô-los intensamente.
Mas havia as misteriosas saídas vespertinas.
Só não ia àquele endereço nos finais de semana e feriados. Rodolfo estava em casa nessas ocasiões e talvez estranhasse suas saídas. Em qualquer estação que fosse, no tempo de chuva ou sol, Ana Amélia saía. E tinha sido assim nos últimos dez meses. Quase um ano.
Rodolfo sabia de suas saídas, mas não totalmente. Ele era metódico, rotineiro. Os dois eram assim. Talvez por isso, também, tenham ficado juntos por tanto tempo. Quinze anos.
O marido nunca telefonava no horário em que ela não estava em casa e isso a tranquilizava. Mesmo assim, Ana Amélia não esquecia de levar o celular. E o notebook.
Um dia Rodolfo começou a desconfiar. Foi de repente, assim como uma lufada de vento ao cair da tarde.
Ele não se sentia bem. Estava no escritório da floricultura, cujo nome era Bem-me-quer, quando começou a sentir um ligeiro mal-estar, uma espécie de enjoo. Resolveu ir para casa, descansar um pouco. Há dias vinha em um ritmo alucinante de trabalho. Havia conseguido um novo contrato para fornecimento de flores e o cliente era de uma exigência tirânica. Mas pagava bem. Muito bem.
Rodolfo pegou o carro e foi guiando pela Avenida Beira-mar. A brisa marítima foi como um bálsamo para seu corpo e espírito. Relaxou. De repente ele olha para o outro lado da rua e vê Ana Amélia entrando em uma casa que ficava de frente para o mar. Pensou que talvez ela tivesse ido fazer alguma visita. Entretanto, o bichinho da desconfiança começou a tecer seu caminho na cabeça e no coração de Rodolfo. Ele pára o carro em frente à murada da praia. Não desce, apenas fica um longo tempo observando o movimento na casa. Mas não havia movimento. A casa permanecia imutável. Somente as cortinas flutuavam ao toque do vento que vinha do mar.
Era por volta de 16:30 hs. Ana Amélia só saiu da casa às 18:00 hs. Estava sozinha, e assim entrou no carro estacionado na garagem ao lado da casa. Rodolfo sempre chegava em casa às 19:30 hs. Nesse dia chegou mais cedo, logo depois de Ana Amélia. Quando ele entrou em casa ela ainda estava vestida com a mesma roupa. Levou um susto assim que Rodolfo entrou e colocou a penca de chaves no móvel.
Ele, então, perguntou:
– Você saiu?
– Sim, fui fazer umas compras.
Mas não havia sacolas ou pacotes. Rodolfo notou. Resolveu não comentar.
– E você? A essa hora em casa... Aconteceu alguma coisa? Quis saber ela.
– Sim, não me sinto bem. Devo ter comido alguma coisa que me fez mal.
– Quer um remédio?
– Não, obrigado. Estou me sentindo melhor. Vou tomar um banho e descansar um pouco.
– Certo. Vou preparar o nosso jantar.
Rodolfo saiu e só então Ana Amélia percebeu a ausência de sacolas. Idiota, pensou dela mesma.
Enquanto isso, Rodolfo estava intrigado com a mentira da mulher. Aquele bichinho da desconfiança deu mais uma mordida em seu orgulho de homem e ele perguntou a si mesmo: – Será que ela tem um amante?
Na cozinha, Ana Amélia cortava tomates maduros para o molho, entre um gole e outro de vinho. Precisava beber para tentar ficar um pouco anestesiada. Estava preocupada. Não gostava de mentiras. Sempre soube que mentiras são uma armadilha.
Jantaram em silêncio. Um silêncio incomum, pesado, dolorido como suas consciências.
Ele, desconfiado.
Ela, arrependida.
Depois do jantar Rodolfo foi para a cama, mas não conseguiu dormir. Sua cabeça parecia querer explodir de tanta dor. Enxaqueca.
Ana Amélia voltou ao notebook. Sua cabeça fervilhava de ideias. Precisava escrever. Não podia esperar até amanhã à tarde. A mentira que havia contado ao marido dava voltas em sua cabeça, mas as ideias pululavam em maior intensidade. Ana Amélia escreveu até o dia raiar.
Rodolfo acordou e viu a mulher em frente ao pequeno computador, com uma xícara fumegante de café fresco. O cheiro bom se espalhava pela casa e por um segundo Rodolfo esqueceu suas desconfianças.
– Está melhor?
– Sim. Vou tomar café, depois um banho e seguir para o trabalho.
E assim começou o dia para o dois.
Ana Amélia estava cansada, mas não conseguiu dormir.
Rodolfo, por sua vez, não se concentrava nas tarefas diárias.
Na hora do almoço nada comeu. Olhava insistentemente para o relógio de pulso. Queria que o tempo avançasse. Ele resolveu ir novamente à orla, em frente àquela casa, no mesmo horário de ontem. Assim o fez. Chegou um pouco mais cedo e ficou esperando. No mesmo horário do dia anterior Ana Amélia apareceu. Carro estacionado na garagem e ela sobe alguns degraus, coloca a chave na fechadura, abre a porta, entra e fica por lá até às 18:00 hs. Uma cena que se repetiu durante toda a semana, como se fosse uma espécie de ritual.
Rodolfo cada vez mais desconfiado. Às vezes ponderava, pois não tinha visto viva alma naquele lugar, além de Ana Amélia. Mesmo assim pensava que talvez o amante dela pudesse ser o dono da casa. Nesse dilema os dias passavam.
Ana Amélia continuou saindo todas as tardes. Com o passar dos dias as coisas foram se acomodando, mas somente para ela.
Passados alguns dias, Rodolfo tomou uma decisão que lhe custou muito de sua coragem. Iria enfrentar o monstro que crescia atrás da porta. Resolveu, então, ir até a casa. Era numa sexta-feira. Ele havia chegado alguns minutos após Ana Amélia. Viu o carro na garagem. Desceu do seu, atravessou a rua a passos largos. Havia pouco movimento naquele final de tarde, mas ainda podia ver algumas pessoas encostadas na murada da praia, observando o pôr-do-sol. Viu um casal de namorados, de mãos dadas, e nesse momento sentiu um aperto no peito enquanto uma lágrima quente rolava pelo rosto.
Decidido abriu o pequeno portão de ferro. Subiu os poucos degraus. No topo da escada começou a ouvir o som de uma música. Era “linda flor”, na voz de Maria Bethânia. Ele subiu e ao tocar na maçaneta da porta viu que a mesma estava apenas encostada. Seu coração deu um pulo. Não sabia o que encontraria ao adentrar aquela casa.
Não tocou a campainha. Não bateu. Apenas empurrou levemente a porta e entrou a passos lentos, suavemente. Parecia uma criança que estava prestes a fazer uma travessura. Doce ou travessura? – lembrou da pergunta que tantas vezes ouvira em filmes, no dia das bruxas. Talvez o que ele fosse encontrar tivesse sim o gosto mais amargo de sua vida.
Entrou. Começou a olhar o sala. Era pequena, mas confortável. Havia um sofá grande, uma mesinha de centro, na parede uma estante repleta de livros. Não havia televisão, apenas um pequeno aparelho de som do qual vinha a música. O sofá ficava de costas para a porta e nele estava sentada Ana Amélia, com o notebook no colo, absorta, escrevendo. Tão absorta que não percebeu a presença de Rodolfo. Ao lado dela um gatinho persa fingia dormir. Rodolfo pôde ficar ainda alguns minutos parado, olhando a imagem da mulher, tranquila, digitando. O conjunto, a cena toda parecia uma pintura. Era como se o pintor tivesse captado aquele momento e o feito parar na tela.
A música parou. Ana Amélia colocou o notebook no sofá e foi até o aparelho de som. Quando ia voltando viu Rodolfo parado, olhando para ela, sem saber o que fazer. Apesar da surpresa Ana Amélia sorriu para o marido. Ele parecia uma criança prestes a levar um castigo da mãe. Rodolfo estava mais amedrontado do que Ana Amélia.
O silêncio parece ter vindo na hora certa.
Ana Amélia continuou a olhar para o marido e perguntou:
– O que você está fazendo aqui, Rodolfo?
– Não sei, Ana. Realmente não sei.
– Como você descobriu esse endereço?
– É uma longa história.
– Bem, você sabe que vivo de contar histórias. Portanto, conte.
Rodolfo então seguiu até o sofá, sentou-se, respirou profundamente e disse:
– Antes de contar a minha história quero saber da sua.
– Bem, a minha história é apenas um refúgio que encontrei para escrever. Nada além disso. Eu estava me sentido oprimida em nossa casa, os textos não vinham. Um dia estava caminhando pela praia, vi uma placa de aluga-se e resolvi alugar essa casa somente com o intuito de ter um lugar novo que me inspirasse. E realmente funcionou, pois hoje eu acabei de escrever um novo romance. Não contei nada para você porque eu não queria que a atmosfera acabasse. Você sabe que sou, como os jornalistas sempre dizem, meio excêntrica. E você? Conte.
Rodolfo então passou a narrar os acontecimentos desde o dia em que viu Ana Amélia pela primeira vez entrando naquela casa. Contou tudo, inclusive de sua desconfiança de que talvez ela estivesse tendo um caso.
Ana Amélia não se conteve e caiu na gargalhada. Disse que era a primeira vez que um homem era traído por um romance. Bem, pelo menos a palavra romance era um substantivo masculino.
– Eu realmente estava tendo um caso, Rodolfo, mas um caso de amor com um livro. Você sabe da paixão que tenho pela escrita. Sabe o quanto isso representa para a minha vida. Eu só não lhe contei sobre a casa porque achei que não era necessário. Jamais passaria pela minha cabeça que você iria desconfiar de mim. Aliás, quero pedir desculpas pela mentira que contei naquele dia ao dizer que havia saído para fazer compras. Tolice minha.
Rodolfo então disse que ele sim era quem pedia desculpas, pois havia sido, também, um tolo.
Esclarecidas as desconfianças de Rodolfo, tudo voltou ao que era antes. Ana Amélia disse que continuaria vindo escrever na casa alugada e que já tinha o enredo para o seu próximo livro. Aliás, não só o enredo, como o título para o romance, que seria “Ela saía todas as tardes”.
Rita Venâncio.