VITÓRIA - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Padre Melo! Pai! Onde está o senhor? Que saudade do seu colo, do seu canto de ninar, das suas aulas cansativas e dos seus xingos! Padre Melo! Queria tanto o senhor aqui neste momento. Sua presença e sua palavra sempre me fizeram sentir respeito por mim mesmo e de ter orgulho da minha história e de meu povo. Porque eu o abandonei? Não poderia eu ter ficado em sua companhia? Agora o senhor se foi para longe e me deixou aqui com meu destino. Sinto dores no corpo e na alma, sinto meu orgulho ferido e um aperto no peito, como se meu coração estivesse sendo apertado. Meu povo precisa de mim. Não é um lamento de penúria ou de derrota, mas um momento de pensamento conflitivo em que imagino minha vida de outra forma. Eu fui um menino de sorte. Sobrevivi a um grande massacre e acabei caindo nas mãos de um pai que me acolheu, me ensinou as letras e as ciências, e me deu um lar. Talvez por isso eu não suporte a escravidão dos meus irmãos. Eu não fui escravo de fato, não sofri a dor da chibata, mas senti a dor na pele negra do meu irmão tal como a minha. Mas sou humano, e apesar de meus amigos e todo o povo do quilombo pensarem em mim como um ser quase imortal, eu também sofro as dores humanas e também tenho meus medos e fraquezas. Sou de carne, osso e alma, como todos.
Minha perna dói muito do ataque fatal ao quilombo. Ah Domingos Jorge, se eu te pego... Resistimos bonito, até a morte de muitos dos nossos. Por sorte escapei daquela bola de fogo que me feriu mais na alma do que no corpo. Ainda posso ver as chamas no quilombo. Ainda ardem dentro de mim, tal como as chamas, a dor de ver tantos e bravos guerreiros que tombarem lutando pela sua liberdade e a de seus irmãos. Com certeza estão na liberdade do céu, como me ensinou Padre Melo. Parece um fracasso, somos poucos, tão poucos que não sei se vamos conseguir reestruturar nossa luta. Mas vamos tentar. Desistir nunca, jamais. Penso em atacar aos poucos os engenhos da região, e deixando livres os escravos, e quem sabe se não chegaremos a Recife. Só sinto muito não ter visto meu pai na Igreja. Sempre dava um jeitinho de ir vê-lo de noite. Ele sempre deixava a janela do meu quarto encostada e parece que sempre estava à minha espera. Recebia-me com um sorriso largo no rosto, com um abraço ensaiado e uma vontade enlouquecedora de colocar-me no colo como eu era criança e me proteger. Ele sabe muito bem onde eu fui, mas nunca perguntou. Sabe muito bem o que eu fazia, mas nunca disse nada. Talvez porque entendesse minha luta mas não quisesse opinar, porque me pediria para não ir. A escrava que me amamentou contou-me que ele ficou muito chateado na noite que saí de casa, tal qual um garoto rebelde. Ela me disse ainda que ele ficou dias sem comer direito a olhar para o alto na esperança de que eu voltaria. Quando o visitei pela primeira vez ele ficou tão feliz e trocou toda a minha roupa de cama. Mas eu não fiquei. Precisava voltar. Ainda me lembro de vê-lo me abraçar com uma voz embargada e uma lágrima descendo do rosto. Abençoou-me e me desejou paz.
Aqui nesse mato, olhando as chamas do quilombo destruído, culpo-me de sentir saudade do conforto. Mas é a falta dele que me atormenta. Ele dava-me segurança. E eu homem forte, que todos aqui que sobreviveram me veem como líder, percebo-me fraco. Foi uma derrota de batalha, mas a guerra não está perdida. Estamos vivos e vamos continuar. Aqui eu não posso mostrar um mínimo sinal de fraqueza, mas por dentro eu sei que sou forte, mas fraco também. Sinto cansaço e me dói profundamente a derrota do quilombo. Fugir, ver a morte, o fogo, o riso de vencedores daqueles pobres miseráveis que nos matavam a troco de promessas de terra e comida. É humilhante e frustrante ver a derrota e ter que sair do lugar que nossos negros formaram, ver findado a vida organizada e livre que tínhamos. Sair foi doído. Foi com lágrimas intensas nos olhos que caminhamos por essas montanhas perigosas e traiçoeiras, fugindo, vencidos.
Não sei se cometemos erros. Talvez se tivesse convencido Ganga a não aceitar aquele maldito acordo, ainda pudéssemos estar lá na vila de Palmares. Eu sabia que era um plano para nos destruir. Pra mim não tem conversa: com escravos não tem jeito. Não poderia nunca aceitar a ideia de que só os que houvessem nascidos no quilombo seriam livres. Não posso compactuar com a escravidão. Sei que em algum momento vou morrer, mas não vou entregar-me ou render-me para acordo nenhum que seja, a não ser nossa total e concreta liberdade. Ah a liberdade. Dou a vida por ela. É bom sentir o gosto da vida livre e ver as crianças correndo despreocupadas pelos quintais. Nem mesmo nos momentos de tensão, em que tínhamos que nos preparar para a luta, nos desanimavam. E não foram poucas. Muitas foram as batalhas antes e depois de minha chegada. Sempre vencemos e confesso que, honestamente, às vezes julgava que Palmares não cairia nunca. Mas demos trabalho e preocupação. Lá era o sonho de todos os negros. Já que impedidos de voltarem para sua África, aqui recriavam seu continente.
Vejo meus companheiros dormindo e não consigo pregar os olhos. Vejo um cenário triste. Fico pensando que aquele fogo lá longe, são irmãos nossos se queimando. Aquela fumaça são nossas casas que se destoem e nossas plantações destroçadas. Pior que é isso: são nossos sonhos e esperança consumindo-se nas chamas. Quantas lágrimas e sorrisos se vão com aquela fumaça. Aquele lugar é sagrado. Nosso Deus habita e ainda está lá, colhendo um por um dos que se foram e reconduzindo-os à pátria celeste sem dor e sem escravidão. Em mim alimento um ódio mortal a todos os brancos, que paradoxalmente, são daqueles que mais me amaram. Padre Melo e Maria. Ah Maria, minha companheira. Mulher corajosa! Largou o pai, tão poderoso para ficar do meu lado, fugir comigo. Tão linda como a lua que nos serve de luz para não cairmos nos abismos dessa serra. Aliás, é noite de lua cheia e ela parece nos anestesiar a alma. É um acalanto. Meu olhar aberto, voltado para o alto contrapõe o olhar fechado de meus companheiros em sono profundo, fruto do cansaço da luta e do medo. Já se vão quatro dias depois da luta e avançamos pouco. Estamos machucados, feridos, abalados.
Eu ainda não consegui dormir. Ouço vozes o tempo todo. Em minha cabeça ainda estão gravados os gritos das crianças, os lamentos de horror das mães e o brado heróico dos irmãos que tombaram na luta. As vozes não cessam e parecem ecoar o tempo todo dentro de mim. Penso que hoje vou conseguir dormir um pouco. Sinto que já há um cansaço que me consome o corpo machucado e faminto. Eu Francisco, nome que meu pai me deu, sou chamado agora de Zumbi dos Palmares, tenho ainda um pouco de forças para planejar estratégias e continuar lutando. Minha cabeça deve agora valer uma fortuna. Devem estar doidos atrás de mim. Domingos era difícil de combater. Nestes cem anos de quilombo, crescemos muito, avançamos na organização e no conhecimento da terra, mas esse também era sabido das coisas e das lutas. Mas não se ganha tudo. Palmares ficará na lembrança de nós que sobrevivemos e de muitos que aqui estiveram mas não puderam ficar. Estamos na lembrança dos comerciantes que fizeram seus negócios conosco. E mais ainda, estamos feito um fantasma a assombrar cada senhor e cada governador que vier. Palmares pode ressuscitar e ressurgir das cinzas. Talvez em outro lugar e talvez com outro. Nossa luta só está começando. Eles vão pagar pra ver. Vamos organizar e invadir cada engenho, cada fazenda. Onde estiver um escravo aí estaremos nós e nossa luta.
No silêncio dessa noite, ouvindo apenas os sons da mata, calados nossos tambores e calada nossa cantoria festiva contemplo esse horizonte iluminado pela lua de Deus. Olho meus companheiros, confio neles, mas tenho medo que algum deles um dia venha a entregar nossos planos e nos denunciar . Vamos recrutar novos guerreiros e teremos que nos arriscar no território inimigo. Se pegarem um de nós vai ser difícil suportar os castigos. Mas nada me intimida. Vejo a liberdade ao longe, tal qual o nascer do sol que espanta a escuridão, o silêncio e a solidão da noite. Vejo crianças correndo livremente, vejo os velhos morrendo em paz. Vejo o Brasil como um grande Palmares, onde tudo é de todos e ninguém é de alguém. Ao som dos insetos percebo meus olhos se fechando. A esperança me renova e voltando-me uma vez à luz de Palmares, vou dormir para sonhar com a liberdade e a alegria. Que Deus nos proteja nesta noite e na nossa luta, e proteja Padre Melo, onde quer que ele esteja. Amém.