ROUPA NOVA

Um homem, alguns cabelos brancos, mãos grossas e mal cuidadas, provavelmente denunciando o trabalho pesado na lavoura, conversava empolgadamente. Maria – esse o enigmático e teológico nome – separara-se alguns meses atrás.

Geralmente possuo grande facilidade de concentração em ambientes barulhentos, jamais retirando os olhos do livro, especialmente se é tão envolvente quanto Julio Verne. Mas, aquela conversa de trinta anos de espera, casamento, separação, encontros e planos atiçaram minha curiosidade.

O apaixonado explicou que se conheceram numa quermesse. Conversaram, se gostaram, trocaram olhares nas missas e nos festejos públicos, cogitaram ir ao cinema e visitar o sítio de uns parentes, mas a família teve de se mudar para Mato Grosso. As cartas, tão freqüentes no início, diminuíram até escassearem.

Quando voltou a Presidente Prudente, achou-a casada, dois filhos, uma vida de família regular, alternando as macarronadas de domingo na casa da mãe dela e na da mãe dele. Tinham um sítio entre Prudente e Rancharia para onde se lançavam nos fins de semana e nos feriados prolongados. A relação desgastou-se pela freqüência na casa de amigos, de festas e de lugares pouco recomendados.

Décadas depois, a oportunidade de retomar a história de amor parecia tão próxima de se transformar em realidade, entretanto ponderava sobre os sentimentos. Trinta anos, frisava o apaixonado, não eram trinta dias. Os pensamentos, os desejos, os trejeitos, os gostos se modificam em um mês. Por que não se transformariam em trinta anos? O que causava aflição? Como se aproximaria dela? De que gostava? O que repudiava? Onde levá-la? Como promover o clima ideal?

Ouvia atentamente o diálogo quando o colega dele, batendo em meus ombros, perguntou se poderia emprestar a página de entretenimento do jornal. Leu, balançou o queixo e, em seguida, disse que os filmes do fim de semana em nada ajudariam. Gostara de um que passava apenas em dois horários. Talvez ele, o apaixonado, odiasse. As peças de teatro ofereciam um drama e duas comédias. Drama? Perguntava-se, já bastava o cotidiano. Comédia seria uma boa? Provavelmente não. Se ela achasse que ele a considerava uma palhaça?

O amigo me devolvera o jornal e apontara meia dúzia de opções. As alternativas foram descartadas uma por uma até que, sem novidades, voltou a me bater nos ombros. Poderia novamente pegar emprestada a parte de entretenimento? Releu alguns destaques do caderno sem se interessar por nada.

- O que fazer? Perguntou o apaixonado.

- Desculpe-me, disse, mas ouvi sobre um amor de trinta anos. O apaixonado ruborizou, olhos incriminadores contra o amigo. – Muita coisa pode ter mudado em trinta anos, exceto o bom gosto. Se quiser um clima romântico, a melhor maneira de fazer isso é chamar a mulher por quem está apaixonado para ouvir uma boa música, comer um petisco e beber uma Coca-cola. Qualquer música do “Roupa Nova”, para uma mulher bem-amada, pode não simbolizar a melhor escolha, mas nunca vai representar a pior alternativa. Coca-Cola para acompanhar...

- Coca-Cola, meu filho? A senhora, sentada ao meu lado, abandonou o crochê: - Coca-Cola não é bebida romântica. O melhor é Champagne...

- Ou vinho. Vinho é extremamente romântico, interveio uma mulher que viajava de pé, segurando a bolsa com uma mão e, com a outra, o balaústre.

- Champagne é um tipo de vinho, minha cara, retomou a mulher sentada ao meu lado.

- Uma cerveja não seria melhor? Uma estudante de aparentes vinte anos dava sua contribuição sobre a noite de conquista de um desconhecido.

- Cerveja acompanha camarão! Frisou uma mulher de vestido colorido.

- Camarão em Prudente? O dinheiro que se gastaria com camarão daria para comer numa boa churrascaria, a mulher ao meu lado interveio mais uma vez. – Ela é vegetariana?

Mais cinco ou seis mulheres concordaram ou discordaram sobre bebidas e comidas. Descemos do ônibus sem encontrar o que comer ou definir qual a bebida mais apropriada para a ocasião, mas em um ponto todos éramos unânimes: o fundo musical tinha que ser qualquer música do “Roupa Nova”.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de maio de 2011.