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O ar fresco da manhã entra pela janela entreaberta, junto com alguns raios de sol que se esgueiram pela fresta entre as cortinas. Deitado com as costas contra o lençol, minha mão esquerda servindo de apoio para minha cabeça, e sobre meu braço direito, com o rosto aninhado em meu busto, uma moça sorri.

Afago com as costas dos dedos suas costas, ela por sua vez, acaricia meu peito e delicadamente brinca com os pêlos que o cobrem. Subo a mão e penteio seu cabelo com dedos grossos, ela ronrona e move sua perna, que está entrelaçada na minha. Tiro o braço debaixo de minha cabeça, o estico e apanho uma garrafa que descansa na mesinha de cabeceira. Tomo um gole e ouço aquele ronronado tornar-se um breve bufar, a respiração morna que ela exala ao fazê-lo aquece meu pescoço. Bebo mais um pouco, ao mesmo tempo em que, carinhosamente, belisco uma de suas orelhas, e deponho novamente a garrafa no móvel de madeira clara. Ela me lança um falso olhar, deveras cômico, de zanga, a miro com o canto dos olhos, com um meio sorriso nos lábios, me viro e dou-lhe um beijo com sabor de vinho. Uma de suas mãos corre as linhas de meu rosto, ela me fita com um misto de preocupação e desejo, segurando-a pela cintura, beijo-a outra vez. Com cuidado, desvencilho nossas pernas, colo nossos lábios novamente antes de me virar, ainda sorridente, e sentar-me na beirada da cama, de costas para ela. Tão logo me encontro de frente para a janela, morre meu sorrir, separo as cortinas permitindo que a luz do sol jorre desimpedida quarto adentro. Apoio os cotovelos nos joelhos, e observo o céu azul, límpido como somente numa alvorada invernal, sem uma única nuvem a perder-se em sua imensidão. Ouço-a se remexendo sob as cobertas, tento limpar meu pensar a fim de sorrir-lhe novamente, não consigo, então mantenho o rosto parado, fitando o que existe para lá da janela. Ela me abraça, um braço sobre meu ombro, sua mão repousa em meu peito, o outro envolve minha cintura, a mão corre minha barriga. Sinto seu hálito quente na nuca, seus seios roçam minhas costas, seus lábios tocam a base de meu pescoço, algo em mim reage de imediato. A moça solta um risinho deliciosamente malicioso, sua boca beija meus pescoço cada vez mais para cima, até beijar minha bochecha, coberta pela barba por fazer. Viro o rosto, ostentando um sorriso que não consegue transmitir nada fora tristeza, e faço com que nossas bocas se abracem. Trocamos um olhar, por um breve momento permiti que algo escapasse, noto em sua reação. Ela me aperta com força, beija meu rosto com ternura, sinto seus olhos em mim. Alcanço outra vez o vinho, enquanto sorvo mais dele, ouço sua voz:

- Que foi gato? Desde um tempo você ta assim.

Envolvo sua mão que repousa em meu busto com a minha destra, com o dedão a acaricio, e com voz doce e sorriso falso, digo-lhe que não é nada para com o que se preocupar. Uma rajada de ar frio passa por nós, ela se encolhe atrás de mim, eu aproveito o refresco, os raios do astro rei me aquecem, passado o pé de vento.

-Fecha a janela, tá frio.

Suspiro, e enquanto estendo os braços para cerrá-la, ela corre com deleite uma de suas mão sobre todo o comprimento de um deles. O vento não mais entra, o ar que sai de meus pulmões embaça o vidro a minha frente, o vinho me aquece. Gentilmente a garota me puxa, convidando-me a deitar-me como antes, dou rápido gole, largo a garrafa onde possa alcançá-la, e retorno à posição na qual o dia se iniciou. Ganho um beijo no ombro, os dedos que passeiam pela minha nuca causam agradáveis arrepios, ela inala profundamente e diz cuidadosamente:

- É bom isso né?

Aquiesço com um meneio de cabeça. Ela prossegue petulante:

-Ia ser muito melhor se você me contasse o que te acontece.

-Duvido.

Minha breve resposta a leva a todo um discurso, hora histérico, hora suplicante, hora ameaçador, sobre como tudo se baseia em confiança, e que de qualquer outro jeito nenhuma relação é possível, que honestidade é questão de caráter e mais um punhado de outras afirmações avulsas. Ao falar afasta-se de mim, não há mais carinhos ou beijos, ela de lado na cama, com o cotovelo apoiado nela e o rosto na palma da mão, com o outro braço a cobrir os seios e a mão a tamborilar impacientemente o inocente colchão. Agora com as duas mãos atrás da cabeça, viro meu olhar para ela, e relutante, concordo.

Encarando o teto, pela primeira vez em muitos anos, abro meu coração por completo. Conto-lhe sobre tudo aquilo que me afligia, as razões que me levaram a agir como ajo, acontecimentos que me marcaram, tanto para o mal quanto para o pior, falo-lhe de pessoas que se foram, daquelas que me magoaram, das que vejo sofrer e sou incapaz de ajudar, tudo. Faço de minha vida um penoso resumo. Termino a beira das lágrimas, olho para ela que estupefata diz:

- Ah, mas a gente não pode deixar um problema ou outro derrubar a gente. Tá certo que foi bastante coisa, mas você reclama demais, tanta pessoa por aí passando fome...

Levanto como um furacão, irado como poucas vezes estive, chuto a garrafa no chão sem ao menos percebê-lo. Antes mesmo que ela termine o raciocínio quase atravesso a porta sem abri-la. Com passos duros, ouvindo seus gritos, carregados de estúpida indignação, entro no banheiro, bato a porta sem medir minha força e tranco-a em seguida, me jogo embaixo do chuveiro e o ligo. Como o som da água que cai, seus protestos são abafados, fico só, com meus problemas para mim, como sempre deverá ser.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 13/05/2011
Código do texto: T2967857
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