SEU MATUSALÉM NO DOTÔ DOS UVIDO
Numa cercania escondida de trás daquelas montanhas verdes, num lugar um pouco mais seco, pra falar a verdade, bem mais seco, ainda mais quando se fala das épocas em que não chove no sertão. O nosso chamado verão.
Verão esse que é bem mais duro por aqui, e engole três estações do ano. O O sol aqui, é realmente egoísta. Nas gírias do lugar, poderiam chamá-lo de saliente, pra frente, anchoso, ou qualquer outro termo que se incumbisse de retratar o seu comportamento.
Pois é, num ambiente desse, onde a areia dá na canela quando se pisa, e urubu repousa em espinho de mandacaru, morava seu Matusalém. O típico matuto. Gostava de arcordar antes que o sol viesse tomar o seu sono às quatro e meia da manhã, tomava café sem coar, limpava os dentes com folha de juá e calçava "aprecata" de couro de bode.
Levantava-se calçava suas botas, sua calça jins surrada, sua camisa amarelada pelo tempo, mas, sem um rasgão. Por cima vinha a capa de couro e fechava o figurino com um chapéu de vaqueiro, daqueles que o sertanejo sabe usar, de couro marrom, com o laço do queixo amarrado na nuca.
Seu nome verdadeiro era José, como a maioria dos seus contemporâneos, que só podiam ser distinguidos com as qualificações: Zé de baixo, Zé de riba, Zé de Flora, Zé de Tonha, Zé de Mané Brito ou de Maria Joana, só assim se sabia de quem se estava falando.
Mas ele, com tantos anos nas costas, ainda carregava boa parte do seu vigor da mocidade, não andava torto nem penso, nem usava bengala, e se tivesse um forró, ai ai, de lá só saia por último, quando tudo, por fim, terminasse.
Realmente não era de seu hábito tomar muito banho, ainda mais ele, que passou a vida toda economizando água por causa da seca. Agora que as dificuldades acabaram, seu Matusalém continua preservando o mesmo costume.
Sua casa tem cisterna, água encanada que chega de quinze em quinze dias, toda essa parafernalha que o governo fornece, mas ele não tá nem aí. Diz ele que “andar cheirando é coisa pra cabra safado! Homem mesmo tem que ter cheiro de homem pra chamar a atenção das moças e assombrar os bichos do mato!”
Mas hoje seu Matusalém, mesmo vestindo o figurino de sempre, depois de dar água aos bodes, milhos às galinhas, ração aos passarinhos e cortar palmas para o gado, vai a cidade visitar o otorrinolaringologista! “Eita nomezinho da peste!” Era o que dizia quando tentava pronunciar, e preferia dizer que ia visitar o dotô dos Uvido.
Montou no seu burro e foi, vinte e cinco quilômetros até chegar na cidade, mas ainda eram cinco e meia da manhã. Dava tempo de ele chegar até as oito. Como sempre, foi devagarzinho, sem pressa...
Afinal, “É melhor perder um minuto da vida que a vida num minuto!”, era o que dizia, e mesmo sendo forte, com tantos anos nas costas, não suportaria um tombo de burro em alta velocidade, gostava de viver, agia com cautela.
Chegou na cidade, amarrou o burro num “pé de pau” e foi subindo, rumo ao posto de saúde, que ficava no alto de uma ladeira.
Ele não se habituava aos costumes daquele povo da cidade, ainda mais dos tempos de agora... As garotas com roupas curtíssimas, mostrando o umbigo... Decotes tão violentos que despertava até mesmo ele!
Os casaisinhos se apertando no meio da rua, mão vai lá, mão vem cá, cada suspirada que deixava qualquer cristão sem ar.
“Pouca vergonha! No meu tempo essas coisa num acontecia de jeitcho ninhum!”
E os rapazes então? Cabelos pintados, brincos nas orelhas e pelo resto da cara, cada roupa colorida, cada cabelo esticado, cheio de gomalina, jogado por riba das venta!
"Eitas cabra sem vergonho!"
Todos na cidade o conheciam, era realmente uma figura ilustre, os donos das budegas, os bêbuns dos butecos, e até mesmo os garotos do parque. Todos o cumprimentavam com um sorisso no rosto e um aceno.
Nunca arrumou trupé, nunca se abusou com mulher, principalmente a dos outro.
"O que mulé fala num se iscreve! Que com mulé num si discuti, si manda!" - E todos os respeitavam assim.
Foi passando, chegou no posto, e disse se dirigindo à garota do guichê de maneira bem dura e seca:
- Vim vê o dotô dus uvidu! Ele já deve de tá me isperando...
- Pois não. - Atende educadamente à atendente que já estava acostumada aos comportamentos daquele povo do campo.
- Venha por aqui por favor.
Ele se desencosta do balcão e vai caminhando vagarosamente ao consultório. Um caminhado duro, mas cheio de elegância, claro, elegância de homem do campo, elêgancia de "cabra macho", sem muito "fuloreio".
Os braços pendentes, as costas um tanto encurvadas, a cabeça suavemente declinada para o lado direito, em contraposição à postura do chapéu, as botas não se arrastam no chão de jeito nenhum.
Ele entra, tira o chapéu, e bate com a palma da mão na porta que já estava aberta, somente para chamar a atenção do doutor, que estava de costas:
"Bum" - Eita sutileza... Mesmo contendo a força, o baque estrondou toda a sala do médico e parte do corredor.
- Licença dotô!
O doutor se vira, num tom de assombro e pede:
- Sente-se, por favor. - Ele se senta – O que o senhor está sentindo? - Pergunta o médico preparando os equipamentos para examiná-lo.
- É o que hôme? Fale mais arto pu favô que eu faz tempo que não to ovindo muitcho bem!
- Sim... Entendi...
O doutor gira pra lá, pra cá, aperta daqui, torce dali, bota aparelho, tira aparelho... E seu Matusalém, de mais por tranquilo.
Então, após analisar o homem, que foi bem paciente e observou apreensivo a todas as andadas do médico, o doutor proferiu em voz alta:
- O SENHOR PRECISA DE UM APARELHO PRA VOLTAR A OUVIR DIREITO.
- Certo... Disso eu já sabia!- O homem concorda – E é caro esse tar desse apareio dotô?
- Olha, não é de graça não, mas também não é caro...
- Com todo respeito, dotô, o sinhô dexe de arrudeio e sorte aí quanto é a facada!
O médico se surpreende com o quão direto e rude era o homem, e falando meio sem jeito:
- Bom, o aparelho custa mil reais...
De um sobressalto o homem se levanta da cadeira, colocando o chapéu e desamassando a camisa, e diz:
- Muito obrigado! Não sinhô! To bem como tô!
O doutor ainda tenta convencê-lo:
- Mas senhor, o senhor gosta de televisão?
O homem ia saindo e depois da pergunta, parou.
- Não! E até hoje não intendo como um cristão pode gostá daquele bicho! A diferença pra um cabaré é só que tu num pode pegá nos birimbelo! Aquilo é uma desgraça! Fica professorando tudo o que num presta, só num aprende quem num qué, mas ela sabe ensiná! E como sabe! Sabe sim dotô, sabe insiná o caba robá, fuma maconha, secrestá! Insina tudo o que é ruim! Num quero uma peste daquela nem di graça!
O médico ainda tentou...
- Mas o senhor não gosta de ouvir rádio?
- Gosto sim – Responde ele, mas urtimamente não to me agradando muito de zuada não!
O médico coça a cabeça, e, sem saber mais o que dizer ainda tenta a sua última cartada enquanto Seu matusalém já estava por cruzar o batente da porta:
- E de conversar? O senhor gosta?
- Gosto sim... - Responde ele sem nenhuma objeção.
- Pronto, o senhor vai poder voltar a conversar com as pessoas, comprando esse aparelho...
- Por mil reais dotô? Num tem conversa da peste que vale esse dinhêro!
Dizendo isso, seu Matusalém pega seu gibão, bota nas costas, dá bom dia e sai andando... Nunca mais por ali apareceu, de velho morreu, e nunca mais seu Matusalém compareceu ao Orritono... Otonarin... Oloringota... "O dotô dos uvido..."
Graciliano Tolentino
Numa cercania escondida de trás daquelas montanhas verdes, num lugar um pouco mais seco, pra falar a verdade, bem mais seco, ainda mais quando se fala das épocas em que não chove no sertão. O nosso chamado verão.
Verão esse que é bem mais duro por aqui, e engole três estações do ano. O O sol aqui, é realmente egoísta. Nas gírias do lugar, poderiam chamá-lo de saliente, pra frente, anchoso, ou qualquer outro termo que se incumbisse de retratar o seu comportamento.
Pois é, num ambiente desse, onde a areia dá na canela quando se pisa, e urubu repousa em espinho de mandacaru, morava seu Matusalém. O típico matuto. Gostava de arcordar antes que o sol viesse tomar o seu sono às quatro e meia da manhã, tomava café sem coar, limpava os dentes com folha de juá e calçava "aprecata" de couro de bode.
Levantava-se calçava suas botas, sua calça jins surrada, sua camisa amarelada pelo tempo, mas, sem um rasgão. Por cima vinha a capa de couro e fechava o figurino com um chapéu de vaqueiro, daqueles que o sertanejo sabe usar, de couro marrom, com o laço do queixo amarrado na nuca.
Seu nome verdadeiro era José, como a maioria dos seus contemporâneos, que só podiam ser distinguidos com as qualificações: Zé de baixo, Zé de riba, Zé de Flora, Zé de Tonha, Zé de Mané Brito ou de Maria Joana, só assim se sabia de quem se estava falando.
Mas ele, com tantos anos nas costas, ainda carregava boa parte do seu vigor da mocidade, não andava torto nem penso, nem usava bengala, e se tivesse um forró, ai ai, de lá só saia por último, quando tudo, por fim, terminasse.
Realmente não era de seu hábito tomar muito banho, ainda mais ele, que passou a vida toda economizando água por causa da seca. Agora que as dificuldades acabaram, seu Matusalém continua preservando o mesmo costume.
Sua casa tem cisterna, água encanada que chega de quinze em quinze dias, toda essa parafernalha que o governo fornece, mas ele não tá nem aí. Diz ele que “andar cheirando é coisa pra cabra safado! Homem mesmo tem que ter cheiro de homem pra chamar a atenção das moças e assombrar os bichos do mato!”
Mas hoje seu Matusalém, mesmo vestindo o figurino de sempre, depois de dar água aos bodes, milhos às galinhas, ração aos passarinhos e cortar palmas para o gado, vai a cidade visitar o otorrinolaringologista! “Eita nomezinho da peste!” Era o que dizia quando tentava pronunciar, e preferia dizer que ia visitar o dotô dos Uvido.
Montou no seu burro e foi, vinte e cinco quilômetros até chegar na cidade, mas ainda eram cinco e meia da manhã. Dava tempo de ele chegar até as oito. Como sempre, foi devagarzinho, sem pressa...
Afinal, “É melhor perder um minuto da vida que a vida num minuto!”, era o que dizia, e mesmo sendo forte, com tantos anos nas costas, não suportaria um tombo de burro em alta velocidade, gostava de viver, agia com cautela.
Chegou na cidade, amarrou o burro num “pé de pau” e foi subindo, rumo ao posto de saúde, que ficava no alto de uma ladeira.
Ele não se habituava aos costumes daquele povo da cidade, ainda mais dos tempos de agora... As garotas com roupas curtíssimas, mostrando o umbigo... Decotes tão violentos que despertava até mesmo ele!
Os casaisinhos se apertando no meio da rua, mão vai lá, mão vem cá, cada suspirada que deixava qualquer cristão sem ar.
“Pouca vergonha! No meu tempo essas coisa num acontecia de jeitcho ninhum!”
E os rapazes então? Cabelos pintados, brincos nas orelhas e pelo resto da cara, cada roupa colorida, cada cabelo esticado, cheio de gomalina, jogado por riba das venta!
"Eitas cabra sem vergonho!"
Todos na cidade o conheciam, era realmente uma figura ilustre, os donos das budegas, os bêbuns dos butecos, e até mesmo os garotos do parque. Todos o cumprimentavam com um sorisso no rosto e um aceno.
Nunca arrumou trupé, nunca se abusou com mulher, principalmente a dos outro.
"O que mulé fala num se iscreve! Que com mulé num si discuti, si manda!" - E todos os respeitavam assim.
Foi passando, chegou no posto, e disse se dirigindo à garota do guichê de maneira bem dura e seca:
- Vim vê o dotô dus uvidu! Ele já deve de tá me isperando...
- Pois não. - Atende educadamente à atendente que já estava acostumada aos comportamentos daquele povo do campo.
- Venha por aqui por favor.
Ele se desencosta do balcão e vai caminhando vagarosamente ao consultório. Um caminhado duro, mas cheio de elegância, claro, elegância de homem do campo, elêgancia de "cabra macho", sem muito "fuloreio".
Os braços pendentes, as costas um tanto encurvadas, a cabeça suavemente declinada para o lado direito, em contraposição à postura do chapéu, as botas não se arrastam no chão de jeito nenhum.
Ele entra, tira o chapéu, e bate com a palma da mão na porta que já estava aberta, somente para chamar a atenção do doutor, que estava de costas:
"Bum" - Eita sutileza... Mesmo contendo a força, o baque estrondou toda a sala do médico e parte do corredor.
- Licença dotô!
O doutor se vira, num tom de assombro e pede:
- Sente-se, por favor. - Ele se senta – O que o senhor está sentindo? - Pergunta o médico preparando os equipamentos para examiná-lo.
- É o que hôme? Fale mais arto pu favô que eu faz tempo que não to ovindo muitcho bem!
- Sim... Entendi...
O doutor gira pra lá, pra cá, aperta daqui, torce dali, bota aparelho, tira aparelho... E seu Matusalém, de mais por tranquilo.
Então, após analisar o homem, que foi bem paciente e observou apreensivo a todas as andadas do médico, o doutor proferiu em voz alta:
- O SENHOR PRECISA DE UM APARELHO PRA VOLTAR A OUVIR DIREITO.
- Certo... Disso eu já sabia!- O homem concorda – E é caro esse tar desse apareio dotô?
- Olha, não é de graça não, mas também não é caro...
- Com todo respeito, dotô, o sinhô dexe de arrudeio e sorte aí quanto é a facada!
O médico se surpreende com o quão direto e rude era o homem, e falando meio sem jeito:
- Bom, o aparelho custa mil reais...
De um sobressalto o homem se levanta da cadeira, colocando o chapéu e desamassando a camisa, e diz:
- Muito obrigado! Não sinhô! To bem como tô!
O doutor ainda tenta convencê-lo:
- Mas senhor, o senhor gosta de televisão?
O homem ia saindo e depois da pergunta, parou.
- Não! E até hoje não intendo como um cristão pode gostá daquele bicho! A diferença pra um cabaré é só que tu num pode pegá nos birimbelo! Aquilo é uma desgraça! Fica professorando tudo o que num presta, só num aprende quem num qué, mas ela sabe ensiná! E como sabe! Sabe sim dotô, sabe insiná o caba robá, fuma maconha, secrestá! Insina tudo o que é ruim! Num quero uma peste daquela nem di graça!
O médico ainda tentou...
- Mas o senhor não gosta de ouvir rádio?
- Gosto sim – Responde ele, mas urtimamente não to me agradando muito de zuada não!
O médico coça a cabeça, e, sem saber mais o que dizer ainda tenta a sua última cartada enquanto Seu matusalém já estava por cruzar o batente da porta:
- E de conversar? O senhor gosta?
- Gosto sim... - Responde ele sem nenhuma objeção.
- Pronto, o senhor vai poder voltar a conversar com as pessoas, comprando esse aparelho...
- Por mil reais dotô? Num tem conversa da peste que vale esse dinhêro!
Dizendo isso, seu Matusalém pega seu gibão, bota nas costas, dá bom dia e sai andando... Nunca mais por ali apareceu, de velho morreu, e nunca mais seu Matusalém compareceu ao Orritono... Otonarin... Oloringota... "O dotô dos uvido..."
Graciliano Tolentino