UTOPIAS - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Aquele vinho estava mais doce do que o de costume. Hummm, muito, muito bom! Ainda posso sentir aquela suavidade do vinho descendo pela minha boca e esquentando as noites de longos debates e de conversas infindáveis pelas esquinas dessa cidade que à noite, cala-se dentro de suas casas e ficam mergulhadas em suas orações domésticas, reservando o barulho apenas aos boêmios despreocupados com as formalidades e desvairados andantes pelas íngremes ladeiras que quase nos tiram o fôlego. Deus abençoe as pedras que muitas vezes me serviram como amparo nas quedas noturnas, depois de vários copos de vinho e de discussões entre um copo e outro. Nas ruas escuras e com o olhar enevoado pela bebida, as pedras eram as companheiras de caminhada. Como sinto saudade das ladeiras e das pedras! Quantas pedras hoje no caminho que não me servem de amparo! Que saudade daquela lua cheia e das mulheres das tavernas. Como esquecer tantos discursos efusivos e tantos vivas que eu recebia de tantas pessoas que não entendiam nada do que eu dizia. Tempo bom! Sinto falta até do pulo dos gatos a me assustar no meio da noite por detrás dos casarões quando eu resolvia ir para casa. Na taverna eu era figura obrigatória. E nunca perdi minha lucidez ou o juízo, apesar das noites animadas. Sempre soube o que quis e como quis ser e fazer. Todos os dias eu subia a rua direita e ficava no bar da esquina de onde eu podia observar a Câmara e discutir meu assunto preferido durante as noites frias nestas montanhas que emolduram a bela Vila Rica .
Naquele fim de tarde, um vento extremamente frio varria o alto das montanhas. O vento fazia a curva na esquina vindo das bandas da Igreja de Santa Efigênia, majestosa, lá no alto, como que a bradar pela ousadia de sua construção feita por e para os escravos. Na Igreja São Francisco os sinos anunciavam o fim das festividades de abertura da festa do grande santo e as senhoras piedosas dirigiam-se para suas casas, de volta daquela que deveria ter sido uma belíssima celebração. Esquecidas em seu tempo e alheias a tudo o que acontecia nas noites da cidade, cada senhora voltava-se para seus afazeres domésticos, para a educação de seus filhos e netos. Vila Rica era sempre uma festa. Cada dia tem um santo para festejar e essa efervescência, esse ir e vir, me enchem de uma melancolia que neste momento me serve como distração para não me ater ou desesperar neste trajeto fatal. Naquele dia eu estava mais entusiasmado do que nunca, e olhando diretamente para as montanhas, sonhava com o alto, não com a glória, mas com a liberdade do vento que vai e vem onde quer e não precisa dizer nada a ninguém. Vai para o norte ou sul sem se preocupar com os obstáculos que porventura existam. O vento era uma inspiração. Sonhava e ainda sonho com uma nação que segue o rumo que seu povo deseja. Naquela noite de domingo, ainda no início da primavera, eu era a voz que gritava pela noite adentro e entusiasmado, pregava minha revolução, mais pessoal do que nunca como agora vejo. As pessoas concordavam comigo. O Brasil pode ser a nação mais justa do mundo, nós podemos ser livres e construir um país sem explorações e sem alguns sendo melhores que outros. Tantos me ouviram, que alguns influentes senhores, das mais nobres famílias reuniram-se ao redor do meu sonho. Percebo que meu sonho tinha um alcance maior e pago o preço da minha ousadia solitária neste momento, mas acompanhado de muitos que sei, sonham o mesmo que eu. Meus companheiros estão livres da morte anunciada, mas também pagarão de sua forma pelo sonho que tiveram.
Fecho os olhos e volto-me para a pequena capela de Nossa Senhora da Ajuda, na fazenda onde passei minha infância. Posso ver seus olhos que sempre me encararam como a dizer que eu deveria ser um bom menino, na falta da minha mãe que tão cedo se foi. Seus olhos agora parecem me encorajar nestes momentos em que qualquer homem sentiria-se fraco e abandonado. Mistura de pânico com coragem, vitória com derrota, humilhação com orgulho é o misto que me toma o coração e a alma. Aquele olhar de Nossa Senhora da Ajuda é que me dá o auxílio para que meus sentimentos e minhas sensações não sejam apenas negativas. Vejo-me correndo por aquelas campinas ao lado da capela onde eu brincava na minha inocente infância, no mesmo lugar onde comecei a trabalhar. Trabalho duro, de viajante, por onde pude conhecer caminhos, pessoas, ideias várias. Estive no norte e no sul, no Rio e por esses caminhos pude admirar paisagens de uma nação sonhada. Colecionei sorrisos, chuvas torrenciais, frio e calor intensos. Sou um homem da estrada, do caminho sempre a ser feito, de estradas a serem desbravadas, dos desafios a serem superados.
Lembro agora as noites animadas em que conversávamos e planejávamos um Brasil diferente desse que todos vêem agora. Era uma bandeira que evoca a liberdade, que está bem guardada e um dia, sim, bem do alto de um mastro há de flamular festiva e espalhar um perfume de vida nova pelos ares destas minas gerais. Minha querida terra será a capital e nossa Vila Rica o centro de estudos desse país. Sonhos... sonhos... sonhos que ainda permanecerão vivos no coração de muitos que agora me olham e sei, morrem um pouco comigo, mas ressuscitarão com as ideias que não são só minhas, mas de todo homem de bem.
Ah a vida! A minha foi a melhor que eu pude. Estive ao lado do meu povo e fiz muito por muitos. Quantos sorrisos hoje são mais belos pelas minhas mãos. Quantas dores a menos existem pelos meus remédios e minhas atitudes. Penso que não tenho o direito de chorar ou de sentir medo. Tenho o privilégio de poder ver minha vida passar diante de mim como um grande teatro, em que atores entram e saem de cena o tempo todo. Cada sorriso e cada boca com um dente novo e uma dor a menos eram a minha alegria. Nem sempre me pagavam mesmo, mas ah, o sorriso inocente era uma gratidão que hoje carrego comigo. Como esquecer minha prisão por causa do escravo que defendi pelo norte. Voltei completamente vazio, com minha roupa de corpo, limpo, sem nada de meu, mas voltei com meu orgulho de homem e minha dignidade humana recompensada. Mas como sempre, dei um jeito. Fiz de tudo nessa vida e curei muitas dores. Hoje, nestes passos lentos, distraio-me por não poder curar a minha. Pude dar muitos sorrisos e agora não consigo sorrir.
Muitos me classificaram como louco, e talvez eu seja mesmo. Minha loucura foi sonhar com um mundo melhor e nem sempre me preocupar comigo mesmo. Sim, eu mesmo, Joaquim José da Silva Xavier, bebi, gritei pelas ruas de Vila Rica e proclamei a república dos meus sonhos. Fui um visionário e agora me encontro aqui na capital desta colônia pagando o preço da vontade de fazer deste lugar uma nação prodigiosa.
Subo agora o vigésimo e último degrau deste patíbulo. Cada flexão do joelho me traz uma lembrança. Só quero que isso termine logo. Mas ainda aqui, ouço ao longe novamente minha sentença de morte e esquartejamento do meu corpo. Cada parte ficará espalhado pelos caminhos de minas, onde falei de meus anseios. De uma certa forma, mesmo macabra, estarei junto das pessoas com quem estive sempre. Volto para meu povo, não morto, mas vivo na lembrança que fui e no fruto de meus diversos trabalhos e nas almas agradecidas de tantos que ajudei. Sinto correr pelo meu corpo um frio intenso, como aqueles das noites animadas de Vila Rica. É o vento do corpo que sente seu fim. Tremo agora enquanto escuto meu amigo Frei Raimundo sussurrar uma absolvição de meus pecados. Cabeça erguida, encarando nos olhos a grande plateia que assiste ao meu martírio. Uns parecem até sorrir, mas a maioria morre um pouco comigo, para deixar dentro de si a semente do meu sonho de república e de liberdade. Já são praticamente onze horas. Vou cair no cadafalso. Mas certamente, não será o fim.