O HOMEM (QUASE) SÓ
O HOMEM (QUASE) SÓ
Era uma noite de outono. Fria. Não um frio intenso. Mas para ele era sim. Eu o vi depois de algum tempo. Estava imperceptível. Pelo menos para todos que estavam ao seu redor e naquele espaço movimentado e animado. Eu o vi porque estava só, sem muito que fazer, e assim pude notar o homem que dormia indiferente a tudo.
Era uma pequena praça, uma lanchonete, uma igrejinha do lado, alguns ambulantes e um ponto de ônibus. Era a entrada de uma faculdade. O homem estava debaixo de uma árvore, com alguns papelões no chão onde se podia ver o desenho de uma maçã. Ele usava um boné vermelho, todo sujo, com uma roupa de frio surrada e insuficiente para o frio que fazia ao ar livre naquela noite. Ele estava deitado, com as pernas dobradas como a posição de um feto. Talvez seja um feto a querer nascer na sociedade que não o viu ainda. Ele parece não existir para muita gente. Ele ainda não nasceu.
Não se pode imaginar seus pensamentos. Ele estava dormindo (ao menos aparentemente) e parecia também ignorar o mundo à sua volta. Do lado havia uma garrafa com um pouquinho de refrigerante, talvez resto de alguém bem nascido. A noite era sua companhia e a luz da lua a única que o iluminava. Ele dormia ao lado do ponto de ônibus, onde todos, na sua pressa de irem dormir não notavam o homem ao chão. Ele estava só, ou quase só. Curiosamente três cachorros o cercavam fielmente. Seriam eles sua companhia, seus seguidores, e talvez os únicos que o amem. Um deles latiu num único momento entre a meia hora que fiquei por ali.
Dei uma volta pela praça e ouvi involuntariamente as conversas de algumas pessoas. Uns falavam das meninas ao lado, ouvi um rapaz combinando uma festa da sua turma e convidando os amigos para participarem. Escutei também um grupo discutindo questões de uma avaliação. Outros estavam assentados na lanchonete e tomavam uma cerveja despreocupadamente. Muitas pessoas conversavam enquanto esperavam seu ônibus ou um táxi, que apanhou um grupo de três estudantes. O mundo continuava sua vida sem maiores problemas e aquele homem não fazia parte dele.
Fiquei ali pensando por um tempo. Meu Deus, passando por aquele homem, sem nota-lo os futuros advogados, que defendem a lei e tentam propiciar a justiça. Estavam ali futuros assistentes sociais, que vão desenvolver um trabalho junto a essas pessoas que a sociedade insiste em não enxergar. Estavam transitando pela praça e esperando sua vez de voltar para casa os futuros médicos, responsáveis pela manutenção da vida, e assim por diante. O futuro do país passando naquela praça, indiferente à dor do outro, daquele que ninguém via. Que mundo vamos ter? Como vamos sonhar com igualdade se não queremos ver quem sofre de injustiça ao nosso redor? A faculdade, ah os tempos de faculdade! Sonhos, debates acalorados, mudar o mundo... E agora vejo tanta indiferença. Ninguém vê o homem ali, com frio, sem comida e sabe Deus mais sem o que. Sem tudo, na verdade. Não há nada ao seu redor. Só os olhos cegos de quem deveria enxergar o mundo de forma especial. Só os olhos escuros de pessoas que são a esperança de um mundo melhor para todos.
A gente já sabe como essa história termina. Profissão, carreira, casamento, filhos, uma casa confortável, um carro na garagem (ou dois) e de repente as pessoas são tomadas pelas preocupações cotidianas que se esquecem do mundo que está ao seu redor. E continuam a ser tão indiferentes como sempre.
E eu? Eu apenas o notei. Também não o vi. E fico aqui em casa divagando palavras sobre um problema que necessita de atitudes. É a minha parte na hipocrisia da sociedade cega, fria como essa noite e indiferente como a lua, que ilumina todos os lugares, sem se preocupar com quais lugares precisa de sua luz e de sua beleza. E o homem? Provavelmente está lá, no mesmo lugar, talvez sem ninguém por perto, ao ar livre, ao relento, ao frio, no silêncio de sua solidão e no desamparo da sociedade que não quer vê-lo. Perdoe-me. Perdoe-me inclusive a ousadia de escrever sobre o homem que também não enxerguei como devia. Que ele me tire o sono esta noite e que eu possa ter uma inquietude de coração e de alma, a contaminar os que comigo convivem para que possamos mudar muito do que não deveria nem existir. Boa noite pra você.