NO CORAÇÃO DE PARIS

É cedo e está frio em Paris, temperatura em torno de sete graus, mas ela não se importa com isso, faz parte do seu viver o sofrimento cotidiano. Não tem atenção para a ostentação que se apresenta nas vitrines da Louis Vitton, tampouco da Chanel ou Rolex do outro lado da avenida. Nem ao menos dirige o olhar para as pessoas, não se acha à altura, surge no amanhecer e desaparece cabisbaixa quando o dia termina. Faz o que todos os dias habitou-se fazer, prostra-se completamente, sem cerimônia, sobre uma calçada da Avenue Champs Elysees, nas proximidades do Arco do Triunfo, em frente a uma luxuosa loja de artigos diversos, humilhada e arrebatada pela infâmia da vergonha. Sim, apesar de tudo o constrangimento enchia-lhe a alma envergonhada. Todos a olham atravessado(ela é empecilho no caminho), alguns enojados(será que tem mau cheiro?), outros penalizados(mas não dão esmola). Numa das ruas mais famosas de Paris e onde estão localizadas algumas das grifes mais caras da Europa. O luxo desafiando o contraste da pobreza mais contundente. Não é possível divisar o rosto dela, todo enterrado no chão da calçada. O medo da vergonha. E no entanto a mulher maltrapilha necessita desesperadamente assumir quão miserável e irrevogavelmente pobre é. Não somente para si, seu próprio auto reconhecimento, mas no intuito de mostrar aos que vão e vem essa condição que faz dela uma pária faminta e sem nada, sempre a pedir por extrema e inapelável precisão. Além do mais tudo nela e perceptível pauperrismo, pois a miséria está nos molambos que veste, na sua face melancólica escondida na dureza da terra vestida de pedras e cimento, na tristeza dos seus olhos, nas enrugadas mãos calosas e sujas, no seu olhar desamparado. Todo seu eu se encontra impregnado da imundície da pobreza. A coitada é uma insignificante mendiga deitada de bruços não numa avenida qualquer de um país do Terceiro Mundo, mas ali, bem no coração da Avenida Campos Elísios, em Paris.

A silenciosa posição adquirida pela mendiga é estranha. Ela não fala para pedir esmolas, nem vê os pés dos transeuntes, os olhos estão fechados. Permanece nessa imobilidade por horas. A mão esquerda está enfiada dabaixo do corpo, a direita esticada segurando um copo velho à espera que gestos caridosos joguem lá dentro moedas ou cédulas de euros. Pergunto-me como a indigitada mulher consegue controlar as necessidades fisiológicas, sede, fome, dores musculares, nas juntas, na coluna, no pescoço, nas pernas? Contudo, conjeturo a respeito dos pensamentos perambulando em sua mente e imagino mil coisas diferentes que naquele inusitado instante estariam lhe conturbando, mil desencontros de reflexões, uma tonelada de preocupações, montanhas de amarguras atormentando-lhe os neurônios. Ela é apenas ninguém que quase ninguém enxerga em sua passagem pela calçada onde deitou, indo ou vindo. Um ser humano vivo com todas as implicações que essa assertiva representa e implica. Voltará para seu casebre - ou viverá abrigada sob o piso de uma ou outra ponte alhures, bem longe da luxuosa avenida? - em algum lugar da mais longínqua periferia de Paris levando uns tantos trocados para tentar resolver o mais mínimo dos seus inúmeros problemas? Em qual grau de intensidade a sede e a fome corroem-lhe o debilitado organismo?

Transito apressado pelo local durante a manhã e a mendiga desconhecida já lá se encontra despojada no chão como um saco velho cheio de trastes esquecido por algum descuidado. Por óbvio, choca-me a cena e mexe com minha emoção. Inusitado ver aquilo no ponto mais nobre da capital francesa. À tarde, abismado, vejo-a tal qual estava antes, inalterada na sua inércia burlesca, parecendo um corpo adormecido numa posição imperturbável; à noite ela continua do mesmo jeito, sob a feérica iluminação da Avenue Champs Elysees e o ruge-ruge da multidão barulhenta. Embrulha-se-me o estômago, revolta-se-me o espírito, e algo dentro de mim chora inconsolável. Ninguém se importa, nem parece haver um ser humano de bruços numa calçada por onde centenas de homens e mulheres passam indiferentes. Não, eu não esperava isso em Paris. Pelo menos não dessa maneira tão palpável, visível e chocante. A cidade Luz não esconde a sombra negra da pobreza bem no cerne de seu coração, enorme chaga viva que pensa, fala, tem fome e sede e pede esmolas.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 11/05/2011
Reeditado em 15/08/2021
Código do texto: T2964404
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