Naquele dia
Naquele dia acordou de um jeito diferente. Olhou ao seu redor pra ver se encontrava alguma coisa que comprovasse sua sanidade. Circulou pela casa, pisando devagar para que não o assustasse, porém, tudo era silêncio, estava sozinha. Talvez uma reunião de trabalho o fizera sair sem se despedir. Algo realmente importante que justificasse sua ausência durante o café. Tratou logo de procurar algum vestígio do seu cheiro, uma peça de roupa esquecida, uma gota de perfume derramada sobre a pia do banheiro, ou quem sabe, o seu travesseiro ainda guardasse um pequeno olor. Correu de volta pro quarto, mergulhou sobre o mesmo e respirou-o, mas tarde demais, nada restara dele ali, que lhe trouxesse a certeza de que não estava sonhando. A noite havia sido maravilhosa. Há muito tempo não viviam algo tão encantador e tão real. Talvez por isso precisasse tanto de uma prova tão concreta quanto.
Não costumava bisbilhotar a vida dos vizinhos, mas a moça do 102 lhe causara grande curiosidade. Sempre a via sozinha. Nunca soube que morava com alguém. Estranho. Ninguém sabia de nada a seu respeito.
Saiu para o trabalho convicta de que tudo não passava de pura insegurança sua. E naquele dia nem o trabalho, costumeiramente exaustivo, lhe pesou tanto. Passou o dia pensando em todos os momentos vividos, nas palavras, nos planos, enfim, tudo, tudo tão perfeito. Sorria pra tudo e pra todos. Sorria por dentro.
Nos últimos dias se arriscara até mesmo a dar uma espiadinha pela janela e naquele dia se surpreendera com o que vira.
Assim que se liberou, voltou para casa "voando". Queria chegar primeiro, preparar um bom banho, e um jantarzinho promissor. Era preciso surpreender. E assim fez. O cardápio era resultado de uma de suas conversações a respeito de suas preferências. Arrumou a mesa. Tomou seu banho cheio de essências, vestiu seu robe sensual, apagou a luz. Acendeu denovo, talvez não causasse boa impressão. Seria sugestivo demais e fazer "um tipo meio que nada fora tão programado" também seria bom. Ensaiou algumas palavras. Pensou em beber algo, um vinho quem sabe. Não, só ela gostava de vinho. Um aperitivo qualquer só pra aliviar a tensão. Não via a hora de ouvir o barulho da chave na fechadura, ligou a tv, colocou no "mudo", ligou o rádio, sentou, levantou, repetidamente, dançou um pouco.
Sabia. Naquele dia, havia uma movimentação diferente, e a moça, de um jeito especial, caminhava de um lado para o outro, incansavelmente. Estava mais bonita também do que de costume e parecia bem mais feliz.
Aos poucos sentia-se mais leve, mais alegre. Por vezes uma espiada na sacada, e com o celular na mão, pensava "atraso é instigante", atiça a imaginação e o desfecho pode ser surpreendente. (Sabia que estava sendo observada, mas preferiu fazer de conta que não). Sentia-se tão bem que nem percebera o tempo passar tão rápido e, entre um drink e outro, rodopiava pra lá e pra cá.
Lembrou do filme "A mulher invisível", só que neste caso o homem é que insistia em não parecer.
A música tão romântica e escolhida a dedos para o momento já fora substituída por um "groove" que lhe caía tão bem aos ouvidos e que balançava seu corpo todo. Até cansar. Precisava "beliscar" alguma coisa, já estava tonta, uma saladinha talvez, que se apresentava lindamente sobre a mesa também. Chegou a conclusão que uma "beliscadinha" não estragaria seu visual ( nem o da salada). Só não entedera como uma salada lhe pesara tanto. Algo tão leve, caiu como uma pedra em seu estômago. Pesou seus olhos também. Aos poucos, seu corpo todo. Dormiu. Do jeito que estava, inclusive com a esperança de um belo reencontro. E deixando no ar um mistério ainda maior.
Eu hein! Cada louco com suas manias.