O VELHO SOFÁ
Rasgado como se por mãos enraivecidas e provavelmente em momentos de inesperado furor, sujo por indesvendáveis razões agora obscurecidas, mormente decerto por crianças que sobre ele pularam, deitaram e rolaram na arte tão própria de sua idade, vi o safá plácidamente repousando aos pés do enorme eucalipto. Não parecia despertar nenhum desejo de posse em quem o avistava, o que não era naturalmente de se estranhar pois não passava agora de mero traste destinado tão-somente aos monturos. A vida daquele maltrapilho sofá havia inevitalmente terminado da forma mais inglória possível. Naquele repentino instante em que minha atenção foi tomada por ele, o crepúsculo deitava sobre o abandonado móvel um sereno olhar de desprezo compartilhado por olhos humanos que também por ali peregrinavam alheios à sua condição de jogado de qualquer maneira em algum lugar longe do lar que o abrigou outrora.
Num súbito vislumbre desprovido de nexo, e até mesmo deveras emocionado, quis saber ou ao menos tentei imaginar com meus botões quais teriam sido os momentos mais marcantes acontecidos sobre o assento acolchoado do velho sofá, agora à espera do nada sob o eucalipto silencioso. Palco de quantas indizíveis emoções? Quem ali refestelado tivera boas idéias, pensamentos lúbricos, reflexões íntimas, sorrira maledicente? Algo importante acontecera na surdina, longe de olhares indiscretos, enquanto ele estava acomodado na sala de estar e servia, entregue ao mutismo e impassível, de ninho ou alcova de amor para casais enamorados? Quantos teriam descansado da fadiga na placidez de sua imobilidade? Não, eu jamais saberia coisa alguma a respeito daquele sofá considerado inútil por quem não mais o quisera, somente poderia conjeturar e me deixar levar pela sutileza da imaginação.
Avistei-o a caminho da academia, e o mesmo trajeto fazendo na volta ainda lá se encontrava o mulambento e imprestável objeto, já na semi escuridão que a espalhafatosa sombra do eucalipto projetava. Velho, rasgado, sujo, abandonado. Ridículo despojo alvo do desprezo dos homens e do tempo implacável. O destino já lhe fora dado, sem volta. Mas, eu me perguntava: alguma serventia o faria útil em determinado momento, mesmo ali ao léu, ao menos por instantes? Talvez gatos de rua ou vira-latas famélicos façam dele a cama de sua noite se um mendigo não enxergá-lo antes e enxotá-los aos gritos. Ou, então, as aves aninhadas na copa do eucalipto nele despejarão os excrementos que a brisa se encarregará de encaminhar ao devido alvo. Imagino como o encontrará o amanhã, em que estado poderá ser visto em meio à travessia noturna nas horas antecedentes ao amanhecer. Seus dois lugares provavelmente terminarão ainda mais esburacados, rasgados, fétidos, pútridos.