DOCES LEMBRANÇAS - CRÔNICAS HISTÓRICAS
DOCES LEMBRANÇAS
Ela chegou num dia nublado, com nuvens carregadas e prestes a desabar uma enorme tempestade. Veio de Portugal e tinha uma pele tão branca que reluzia ao sol. Chegou com um sorriso nos lábios e um ar de respeito para aquele que lhe fora dado em casamento pelos seus pais. Estevão e Nolasco, meus pais haviam negociado nosso casamento antes de eu vir para a capitania do Espírito Santo para tomar posse do Engenho de São Raimundo onde vivo com Isabel, a jovem prometida. Usava um vestido branco, maltratado pela poeira dos caminhos da praia até o interior desta capitania. No cabelo, uma singela flor do campo compunha harmonicamente a visão paradisíaca que eu tinha quando a vi apontar ao longe naquela liteira carregada por seus escravos calçados e bem trajados. Tivemos nove filhos, dos quais dois ainda permanecem aqui conosco. Ela tinha dezesseis anos e eu nunca tive outra depois dela Ela sempre foi obediente, dedicada aos filhos e nunca levantou a voz para mim. Confesso que não foram poucas as vezes que levantei a voz para ela. Arrependo-me amargamente destes episódios. Isabel, tão doce, tão meiga, tão gentil. Adverti-a inúmeras vezes sempre que ela se interpunha entre mim e os escravos. Ela os defendia, embora não ousasse falar alto comigo, levava comida, tirava dos castigos e sempre os encorajava. Ela nunca concordou com os tratamentos dados a eles. Para Isabel, eles deveriam descansar mais, trabalhar menos e serem bem tratados. Não poderiam nunca faltar à missa dominical e não admitia que vivessem juntos sem serem casados ou que seus filhos não fossem batizados.
Olho agora daqui do jardim a casa grande. Branca, enorme, de janelas e portas azuis. E são tantas janelas. Cada uma delas me recorda um olhar de minha amada. Volto-me para a moenda. Ela estava sempre passando por lá, embora muitas vezes eu a tivesse proibido, afinal mulher fica em casa e cuida dos filhos. Não sei porque essa se meteu a interferir em tudo. Mas sua voz era tão doce que me desarmava. Meu coração de homem rude, iletrado, se rendia aos seus encantos.
O engenho dava muito lucro. Nossos escravos eram tantos, que se perdia a conta. As lavouras estendiam-se por trás da senzala até bem longe no horizonte. Eu supervisionava tudo com mão de ferro. Eu não tenho dó de escravo nenhum, exceto o João Severino, que castiga os negros pra mim e me avisa de tudo. Ele é de minha confiança. Sempre falava daquele escravo fazendo corpo mole ou simulando uma doença. Esses negros adoecem demais. Qualquer chuvinha e eles caem sem forças. É sempre preciso melhorar a comida dessa gente com tanta doença.
O engenho não para de funcionar. É cortar cana, moer, produzir açúcar para enviar para Holanda. Sinto um prazer enorme em ver tudo funcionando, e eu não aceito moleza. Tentamos não tomar prejuízo, mas isso é quase impossível. Ontem mesmo perdi um bom escravo que deixou sua mão penetrar na engrenagem. A mão dele foi cortada, para ver se salvava para outra função, mas ele não suportou as chibatadas que levou por conta da sua distração. Tem sempre que comprar novos escravos para serem repostos.
Meu sonho de ampliar a casa grande acabou. O açúcar vende por um bom preço e os escravos não estão tão caros. Já compro dos outros engenhos por preços melhores, e com tanta terra que tenho, consigo superar os outros centros produtores. Estou na frente e não pretendo sair da vanguarda. Mas reforma não. Era o sonho de Isabel ampliar a varanda e construir um lindo jardim nos fundos para que nossos netos brinquem. Não deu tempo.
Eu Vasco Fernandes Coutinho estou tendo meus doces lucros. Mas agora, recuso-me a olhar para o cemitério junto à capela de São Clemente. Recuso-me a ouvir ainda o choro daqueles escravos, principalmente de Anna, sua mucama. A lágrima que cai no meu rosto me lava a alma e me faz pensar minhas atitudes. Sei que se eu morrer haverá festa na senzala. Até penso que esses homens e mulheres devem sentir muita dor. Mas, o que seria do engenho sem o trabalho deles e como seria o trabalho deles sem seus duros castigos? Não. Não posso me deixar levar pela emoção. Não posso ter emoções. Esse engenho não dá lucro sem castigo. Trabalho pesado, o dia todo e sem misericórdia com esses escravos.
Perdido em meus pensamentos, vejo Justino, o feitor, que vem me relatar algo da escravaria. Faço sinal que não quero ouvir nada hoje, mas que castigue exemplarmente qualquer desobediência. Olho para a roseira do quintal. Era a primeira planta do jardim sonhado de minha amada. Foi-se, levado pela febre maldita que não quis passar. Agora estou só e preciso ser mais firme com todos. Nada de amolecer. Um homem não se entrega facilmente. Eu sou o senhor de todos aqui e continuarei dominando a região. Na solidão do meu quarto nesta casa enorme, e agora maior ainda, eu me permito chorar um pouco. Esse coração de sessenta e dois anos afinal dá alguns sinais de fraqueza. Mas é só aqui. E eu nem tenho esse direito.