Ah, se fosse comigo!
- O quadro era uma relíquia de família?
- Tenho fumos de pintor. Era meu.
- Mas isso não muda os fatos.
- De modo algum.
- Ah, se fosse comigo! Eu matava.
- Inimaginável. Cortar um quadro para depois emoldurá-lo.
- Deve ter pensado: esse está longe de ser um Portinari.
- Isso.Ele cortou três centímetros. Dois dedos de largura. (Fez o gesto com a mão).
- Ah! Fosse comigo, matava. Torcia o pescoço do sujeito.
- Mas não matei. Hoje pensando melhor...
- Eu trucidava. Ainda era pouco. Como consegue perdoar uma coisa dessas?
- Era uma bela paisagem. Ele decepou um pedaço de árvore que ficava no canto de muro.
- Você é tolerante demais. Ah, se fosse comigo! Reclamou pelo menos? (Ela bufava como se o fato tivesse ocorrido com ela)
- Reclamei, mas ele podia estar defendendo o erro crasso de empregado relapso.
- Ainda sim lhe dava um murro.
- Nem cogitei quando ele confessou que há mais de trinta anos emoldurava e zás! Sempre que precisava cortava.
- Que horror. Jamais perdoaria. Pulava em cima dele e esmagava. (Era gorda)
- Ao contrário, senti que estava diante de história inédita.
- Imperdoável.
- Quando passei os olhos para a outra sala notei que ele possuía um acervo próprio. Era pintor também. Passei até a admirar os seus quadros.
- O quê? Então você leva um quadro para emoldurar... O cara corta a tela ao meio e você...
- Cansei de confundir direito com acesso de ignorância.
- Sabe de uma coisa, você merece uma surra para aprender deixar de ser tolerante.
Levantou explodindo. Virando o café pela metade.
- Ah! Se fosse comigo...
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Série Coisas da Vida