Orgulho de mãe
Meu lindo filho Vinícius
Algumas lembranças são muito especiais em nossas vidas por motivos que até desconhecemos . Essa sempre me vem quando penso na mãe que tenho, na mãe que sou e quero continuar sendo. E mesmo que essa lembrança tenha me trazido alguma tristeza, me fez bem relembrar.
I
O sol já sumira no horizonte e a vermelhidão no céu anunciava mais uma noite de verão. O calor diminuía, a brisa refrescava o fim da tarde, meus irmãos e irmãs e eu brincávamos com o cachorro, que insistia em “roubar” nossa velha bola.
Nossa casa na roça rodeada de alpendres e terreiro de chão batido, ficava pequena para a correria de todos e todas nós, naquela época, ainda sete, dos dez filhos que completariam o quadro nos anos seguintes.
Vez ou outra um tropeçava e caía e por ouvirem o choro, da casa saía uma das irmãs mais velhas ou a mãe, para ralhar conosco, mas tudo ficava bem. Naquela tarde, em meio à gritaria, ouvi minha mãe chamar meu nome e fui atendê-la. Disse-me que iríamos à casa da avó levar-lhe algo e saímos apressadas.
A casa da avó não ficava longe, mas tínhamos que voltar antes de escurecer de todo, pois minha mãe tinha que pôr a janta e encaminhar para a cama os que dormiam mais cedo. Lá chegando, tomei a benção a minha avó e fiquei zanzando aqui e ali, em busca de novidades, enquanto minha mãe conversava com ela. Falavam de remédios, de infusões e saí para a calçada. De lá vi uma meninazinha bem menor que eu, que já tinha sete anos, entretida, brincando com paus e pedras, no chão em frente a sua casa, como eu costumava fazer também.
Vi que falava sozinha, como eu costumava fazer quando brincava. Vi também que parecia uma menina pobre, pois as roupas eram rotas e estava descalça. Pensei em brincar com ela... Imaginei se teria algum brinquedo de verdade, uma boneca que fosse, mas ouvi a mãe chamando-a para entrar.
A meninazinha respondeu “já vou”, mas continuou brincando, alheia ao que se passava a sua volta. Fiquei observando-a numa conversa interminável com seus brinquedos. Mais um tempo e ouvi outra vez o grito da mãe e também o “já vou” distraído, atarefada que estava no seu mundo de fantasia.
Imaginei que estivesse brincando de “curral”, como nós brincávamos e estivesse recolhendo as “ovelhas e o gado”, como nosso pai fazia e imitávamos. Ela devia ser cuidadosa com suas crias e estava guardando-as para o dia seguinte.
De repente vi que uma mulher saía de casa e avançava na meninazinha, de cinto na mão. Levantou-a pelos cabelos, chamou-a de desobediente, teimosa, dizendo que era um desaforo ter de chamá-la mais de uma vez e ela se fingir de surda. Deu-lhe com o cinto nas pernas, uma, duas, três vezes, enquanto ela se debatia desesperada, prometendo não desobedecer mais.
Entraram na casa e eu fiquei ali, passada com a cena de violência que havia presenciado. Como uma mãe podia agir assim? Como podia bater só porque a menina não foi imediatamente ao seu encontro?
Ainda ouvindo o choro da meninazinha e os gritos da mãe que vinham da casa, sentei na calçada. A imagem daquele olhar apavorado enquanto levava as cintadas e o choro sofrido me turvou a visão e chorei desconsolada por ela, tão igual a mim, que eu nem sabia o nome mas sentia que a dureza da vida já lhe fazia tão sem sorte, com uma mãe violenta, que parecia não lhe ter nenhum afeto.
De volta à nossa casa, minha mãe estranhou meu silêncio e minha tristeza. Eu sempre tão tagarela não abri a boca no trajeto. Mais tarde veio saber o que havia acontecido e quando eu lhe contei entre lágrimas o que tinha visto, ela me abraçou e me deixou chorar, quieta. Na certa deve ter pensando que eu era ainda muito criança para sofrer, com as injustiças, com as dores dos outros...
II
Décadas mais tarde me vi em meu filho quando entrou em casa e me contou, aos prantos que vira um coleguinha seu apanhar de um menino bem maior que eles. Chorava indignado por também ser pequeno e não poder defender o colega. Abracei-o e disse-lhe que havia outro jeito para resolver aquilo sem ser com violência e perguntei se queria falar com os pais do menino grande. Ele disse que sim e foi dormir mais tranquilo.
No dia seguinte, o pai dele e eu vimos nosso menino de seis anos, agindo como adulto, contando, mesmo com lágrimas nos olhos, o episódio e outros mais que o menino costumava fazer, amedrontando os mais novos. O pai do garoto se mostrou surpreso e conversamos com ele para que não agisse com violência, mas verificasse o que era aquela agressividade toda no seu filho e buscasse ajuda, se fosse o caso.
Essas lembranças me ocorrem enquanto leio ou vejo na TV casos de mães que espancam, que abandonam seus filhos, levadas por circunstâncias de extrema miséria, doença ou maldade mesmo, com explosões de violência que não escolhe alvo, nem tem limite.
Não basta parir para ser mãe, sempre soube disso.Ser mãe deve ser escolha, jamais um "castigo divino", uma imposição. As mães adotivas nos dão essa grande lição.É preciso atitude amorosa, respeitosa com a vida daquele ser que nos responsabilizamos para educar mas não nos cabe julgar, apedrejar quem quer que seja mesmo que lamentemos e nos choquemos com os casos divulgados.
De certa maneira, ao relembrar passagens da minha infância lembro-me também daquela meninazinha que não pude defender e ao mesmo tempo penso no orgulho enorme que sinto do meu filho.Se indignar com injustiças é demonstrar respeito e amor a vida.É bom constatar que desde cedo ele deixa transparecer que as dores do mundo o incomodam e que também já aprendeu que calar não é a saída.
Enfim, corujices...Orgulho de mãe que aprende a ser mãe todos os dias.
Meu lindo filho Vinícius
Algumas lembranças são muito especiais em nossas vidas por motivos que até desconhecemos . Essa sempre me vem quando penso na mãe que tenho, na mãe que sou e quero continuar sendo. E mesmo que essa lembrança tenha me trazido alguma tristeza, me fez bem relembrar.
I
O sol já sumira no horizonte e a vermelhidão no céu anunciava mais uma noite de verão. O calor diminuía, a brisa refrescava o fim da tarde, meus irmãos e irmãs e eu brincávamos com o cachorro, que insistia em “roubar” nossa velha bola.
Nossa casa na roça rodeada de alpendres e terreiro de chão batido, ficava pequena para a correria de todos e todas nós, naquela época, ainda sete, dos dez filhos que completariam o quadro nos anos seguintes.
Vez ou outra um tropeçava e caía e por ouvirem o choro, da casa saía uma das irmãs mais velhas ou a mãe, para ralhar conosco, mas tudo ficava bem. Naquela tarde, em meio à gritaria, ouvi minha mãe chamar meu nome e fui atendê-la. Disse-me que iríamos à casa da avó levar-lhe algo e saímos apressadas.
A casa da avó não ficava longe, mas tínhamos que voltar antes de escurecer de todo, pois minha mãe tinha que pôr a janta e encaminhar para a cama os que dormiam mais cedo. Lá chegando, tomei a benção a minha avó e fiquei zanzando aqui e ali, em busca de novidades, enquanto minha mãe conversava com ela. Falavam de remédios, de infusões e saí para a calçada. De lá vi uma meninazinha bem menor que eu, que já tinha sete anos, entretida, brincando com paus e pedras, no chão em frente a sua casa, como eu costumava fazer também.
Vi que falava sozinha, como eu costumava fazer quando brincava. Vi também que parecia uma menina pobre, pois as roupas eram rotas e estava descalça. Pensei em brincar com ela... Imaginei se teria algum brinquedo de verdade, uma boneca que fosse, mas ouvi a mãe chamando-a para entrar.
A meninazinha respondeu “já vou”, mas continuou brincando, alheia ao que se passava a sua volta. Fiquei observando-a numa conversa interminável com seus brinquedos. Mais um tempo e ouvi outra vez o grito da mãe e também o “já vou” distraído, atarefada que estava no seu mundo de fantasia.
Imaginei que estivesse brincando de “curral”, como nós brincávamos e estivesse recolhendo as “ovelhas e o gado”, como nosso pai fazia e imitávamos. Ela devia ser cuidadosa com suas crias e estava guardando-as para o dia seguinte.
De repente vi que uma mulher saía de casa e avançava na meninazinha, de cinto na mão. Levantou-a pelos cabelos, chamou-a de desobediente, teimosa, dizendo que era um desaforo ter de chamá-la mais de uma vez e ela se fingir de surda. Deu-lhe com o cinto nas pernas, uma, duas, três vezes, enquanto ela se debatia desesperada, prometendo não desobedecer mais.
Entraram na casa e eu fiquei ali, passada com a cena de violência que havia presenciado. Como uma mãe podia agir assim? Como podia bater só porque a menina não foi imediatamente ao seu encontro?
Ainda ouvindo o choro da meninazinha e os gritos da mãe que vinham da casa, sentei na calçada. A imagem daquele olhar apavorado enquanto levava as cintadas e o choro sofrido me turvou a visão e chorei desconsolada por ela, tão igual a mim, que eu nem sabia o nome mas sentia que a dureza da vida já lhe fazia tão sem sorte, com uma mãe violenta, que parecia não lhe ter nenhum afeto.
De volta à nossa casa, minha mãe estranhou meu silêncio e minha tristeza. Eu sempre tão tagarela não abri a boca no trajeto. Mais tarde veio saber o que havia acontecido e quando eu lhe contei entre lágrimas o que tinha visto, ela me abraçou e me deixou chorar, quieta. Na certa deve ter pensando que eu era ainda muito criança para sofrer, com as injustiças, com as dores dos outros...
II
Décadas mais tarde me vi em meu filho quando entrou em casa e me contou, aos prantos que vira um coleguinha seu apanhar de um menino bem maior que eles. Chorava indignado por também ser pequeno e não poder defender o colega. Abracei-o e disse-lhe que havia outro jeito para resolver aquilo sem ser com violência e perguntei se queria falar com os pais do menino grande. Ele disse que sim e foi dormir mais tranquilo.
No dia seguinte, o pai dele e eu vimos nosso menino de seis anos, agindo como adulto, contando, mesmo com lágrimas nos olhos, o episódio e outros mais que o menino costumava fazer, amedrontando os mais novos. O pai do garoto se mostrou surpreso e conversamos com ele para que não agisse com violência, mas verificasse o que era aquela agressividade toda no seu filho e buscasse ajuda, se fosse o caso.
Essas lembranças me ocorrem enquanto leio ou vejo na TV casos de mães que espancam, que abandonam seus filhos, levadas por circunstâncias de extrema miséria, doença ou maldade mesmo, com explosões de violência que não escolhe alvo, nem tem limite.
Não basta parir para ser mãe, sempre soube disso.Ser mãe deve ser escolha, jamais um "castigo divino", uma imposição. As mães adotivas nos dão essa grande lição.É preciso atitude amorosa, respeitosa com a vida daquele ser que nos responsabilizamos para educar mas não nos cabe julgar, apedrejar quem quer que seja mesmo que lamentemos e nos choquemos com os casos divulgados.
De certa maneira, ao relembrar passagens da minha infância lembro-me também daquela meninazinha que não pude defender e ao mesmo tempo penso no orgulho enorme que sinto do meu filho.Se indignar com injustiças é demonstrar respeito e amor a vida.É bom constatar que desde cedo ele deixa transparecer que as dores do mundo o incomodam e que também já aprendeu que calar não é a saída.
Enfim, corujices...Orgulho de mãe que aprende a ser mãe todos os dias.