SAUDADE - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Vila Rica amanheceu com uma densa névoa. Faz um frio intenso e as torres das igrejas estão todas encobertas. Nas ruas, apenas os cavaleiros e comerciantes conversam mais alegremente do que nos dias em que esta nação era ainda uma colônia. Aqui no meu jardim vejo a pequena ponte que é símbolo do meu amor verdadeiramente eterno. Aqui nesta manhã gelada, colho flores para enfeitar o altar de Nossa Senhora da Conceição. Espeto meu dedo que começa a sangrar lentamente, e volto imediatamente no tempo em minhas lembranças melancólicas de idosa saudosista, a esperar pelo amado que nunca voltou. Observando o sangue, volto àquela tarde neste mesmo jardim em que gritei assustada e conheci o meu amado. Belíssimo, de uma delicadeza real, um sorriso de príncipe, uma gentileza digna da mais alta classe de nobres. Ele chegou provavelmente assustado com meus gritos por causa de um simples espinho no dedo, dando um beijo em sua ponta. E foi-se. Voltou inúmeras vezes e aquele gesto marcou o início de minha paixão avassaladora por aquele magistrado português, bem mais velho que eu que nem ao menos queria conhecer, ora pessoalmente, ora nos encontros daqueles bancos da ponte, ora ainda nos seus textos que fez em minha homenagem.
Ainda me sinto uma viúva, embora nunca nos casamos. Ele esteve sempre dentro de mim e ainda está, mesmo quando ainda do outro lado do mundo e nos braços de uma outra mulher. Por mais que eu não queira sofrer, não consigo deixar de lado a nostalgia que me causa sua lembrança. Tudo me lembra Gonzaga. Parece uma sombra, mesmo distante a seguir meus passos dentro dessa casa e nas ruas encravadas de pedras desta cidade que não vive mais o esplendor dos meus tempos de juventude. Aliás, Vila Rica é como eu. Já envelhecida e com a pele enrugada, esta cidade também está bucólica, parada no tempo e não fervilha mais como no tempo de nossos romances e de minhas juras de amor eterno que eram correspondidas. Vila Rica também perde seu encanto com o tempo. Os poetas se foram, os artistas estão nos seus túmulos e a cidade apenas continua sua vida corriqueiramente, tão diferente do ir e vir de pessoas, tropas, mineradores, carregamentos de ouro do passado. Mas enfim, é a marcha da vida. Nossas igrejas tão ricamente decoradas por dentro, deterioram-se por fora, enchem-se de mofo das chuvas sempre constantes neste vale de lágrimas. Os escravos que restaram, e já não são tantos, vão-se embora aos poucos para lavouras de café ou fazendas de gado. Vila Rica está perdendo seu povo ao mesmo ritmo que perco minha vida. Nem sei se o que faço é viver. Vivo abatida dia e noite, sonhando com um lar que não tenho, com um esposo que se foi sem avisar, com os filhos que a história me negou. O que me consola são as lembranças, que me ferem a alma sempre que volto meu olhar para o largo de São Francisco e vejo ao longe a casa por onde ele me observava. Sempre que faço o caminho de subida nesta cidade, passo pela ponte e não posso deixar de observar os bancos que no passado ouviam nossos sorrisos e nossas juras de amor contemplando as montanhas que rodeiam este lugar que um dia, já foi o berço dos meus sonhos felizes. Quando passo pela porta de sua casa, o que tenho evitado nestes longos anos de angústia, não consigo me conter ao parar diante da janela onde seu olhar me dizia versos e de seu sorriso brotavam juras de amor ao longe. Choro sempre ao ver a janela baixa, de seu quarto, de onde foi violentamente arrancado de seus sonhos numa fria madrugada, no silêncio dos conspiradores e na violência dos bárbaros insanos e desalmados. Não levaram apenas Gonzaga. Levaram minha vida com ele, e com ela, meus sonhos de menina, minha euforia de juventude, a apenas sete dias do que teria sido o dia mais feliz das nossas vidas. Levaram de mim meu ideal revolucionário pessoal e íntimo, de um amor arrebatador, que Vila Rica nunca teria visto igual. Sua casa continua lá, intacta, da mesma cor. Não trocaram nem as cortinas do casarão, como que a deixar intacta minhas lembranças de um tempo que passou e aparentemente insiste em ser como sempre foi.
Ele nunca me deixava em paz. Encontrávamos muitas vezes às escondidas antes do consentimento de minha família quanto à nossa união. A lua tão bela é nossa testemunha fiel. Sempre presente aos nossos encontros no fim das tardes e sempre silenciosa quanto aos nossos sentimentos. Quase todos os dias chegavam versos apaixonados brotados do íntimo de sua alma e que na sua fantasia se autodenominava Dirceu e a mim Marília. Era um amor tão puro e tão casto, que beirava ares de divindade. Estávamos sempre nos vendo. Eu podia ver o poeta perdido em seu olhar para a direção de minha casa. Parece que me observava sempre e queria sempre me proteger, como fez no dia em que nos conhecemos.
Entre uma flor e outra volto meus olhos para a magnífica Igreja de Nossa Senhora da Conceição, com suas torres agora descobertas e iluminadas pelo sol desta manhã que vem dissipando a névoa do início deste dia. Ouço a campainha tocar e meu corpo estremece todo, como um sangue novo a correr nas veias deste corpo cansado e abatido por memórias tantas e lembranças vívidas de um passado tão presente em meus olhos sempre lacrimejantes. É sempre assim, não me assusto de me assustar. Sempre que ouço o sino da porta, imagino ser ele chegando, para me oferecer todos os abraços perdidos e queridos, todos os beijos que a sentença de degredo nos negou. Não consigo compreender sua morte. Não é possível que tudo tenha terminado assim. Ah Gonzaga, porque não voltou? Estive sempre a esperar sua volta, estive sempre pura e casta para você meu amado. Meus beijos ainda estão guardados para lhe ser entregues na eternidade. Estas flores são para perfumar meu corpo no dia do nosso reencontro. Eu as cultivo religiosamente todos os dias, desde que você se foi daqui naquela madrugada inexplicável em que os soldados lhe arrancaram de mim. Mesmo preso fizemos nossa última jura de amor concretizada em um de seus versos, que a mim chegaram com sabor amargo, mas carregado de uma esperança que só cabe aos santos. Foi como se tivessem arrancado de mim o meu coração aquecido e inebriado por seus versos... Também tive meu exílio. Não quis ver ninguém de tanto desgosto. Fiquei longe da cidade por dez anos, para afastar de mim as sombras do tempo. Na fazenda de Itaverava ficava a observara os pássaros que sempre voltavam a seus ninhos. Exilei-me para reprimir as lembranças que dia e noite me açoitavam a alma, como um castigo de escravo fugido. Só não o queria morto e esquartejado como fizeram com um dos sonhadores. Foi horrível a cena da chegada do corpo em pedaços daquele homem que simplesmente ousou pensar e querer uma nação livre. Odeio relembrar a cena, em que sua cabeça ficou ali pregada e exposta para todos verem. Meu Deus, quanta crueldade!
Novamente ouço o sino da porta gritam meu nome. Já vou, respondo eu. É Maria Emília, minha amiga e confidente que me aguarda para a missa matinal. Estava eu tão perdida em meus pensamentos que não prestei atenção ao anúncio dos sinos da igreja, que me lembram do meu dever de rezar todos os dias pela alma de meu amado.
Termino de colher as flores e abro a porta para Emília, que se espanta com minhas lágrimas mais intensas do que o de costume. Mostro a ela meu dedo espetado e ela partilha de minha dor e de minha emoção. Abraçando-me, chora comigo mais um pouco, e vamos rumo à matriz em silêncio. Passo pela ponte, e no auge dos meus oitenta e quatro anos , eu Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, permito-me um minuto de contemplação da cruz que emoldura a ponte do nosso romance. Contemplo no silencio tantas lembranças e emoções que vivemos juntos. Sinto-me perto do fim de minha jornada nesta terra e inexplicavelmente tenho minhas esperanças renovadas de que vou encontrar-me com Dirceu, meu eterno e único amor.
Subindo a ladeira que me leva à Igreja, recordo-me também de minha mãe, que foi um colo ausente tão cedo e que fez uma falta enorme para me consolar nas noites frias e madrugadas adentro, em que meu coração ficava inquieto e inconformado. Entro na igreja e contemplo os altares. Deparo-me diante da imagem de Nossa Senhora da Conceição e rezo por ele, por nós. Já não consigo mais dobrar meus joelhos, que em nada lembram minha vivacidade de adolescente. Olho com o rosto marcado pelo tempo para a face serena da mãe do céu. Em silêncio, apenas uma prece ao oferecer as flores. São perfumes vários, intensos, acompanhados dos mais belos sentimentos de cuidado.
Terminada a missa, olho para o alto, quase sempre inevitável para o largo de São Francisco. Passo pela ponte e entro em minha casa. Sentada em minha cama e olhando a janela vejo a vida passar, o tempo consumir-se e fico eu aqui, horas a fio, a consumir-me também. Um pouquinho a cada dia, até o dia de partir e reencontrar a felicidade. Escurece e durmo serenamente, sempre terminando minhas orações com um pedido à Virgem: guarde-o para mim, amém.
Notas - Gonzaga faleceu no exílio em janeiro de 1811, havia se casado e tinha três filhos.
Maria Dorotéia faleceu em fevereiro de 1853 aos 85 anos.