Medusa
Um pobre diabo. Cabelo de Bob Marley. Jogado numa calçada da Riachuelo com a Lavradio. Rio antigo. Pessoas novas. Problemas antigos. Passa um bom samaritano e lhe oferece a Palavra de Deus. Dessa ele diz estar saciado, pois ainda há pouco passara umas senhoras dizendo serem testemunhas de Deus. Testemunhas e muito íntimas do Altíssimo, pois o chamavam pelo apelido: Jeová. Minha filha o observa com os olhos infantis das crianças de 10 anos. Olhos que não viram ainda muita coisa extravagante, mas o suficiente para lembrar de medusa. Ela contempla, pela primeira vez, uma medusa dos burgos. Uma medusa burguesa. Uma medusa mendiga. Como a realidade é aniquiladora de lendas e mitos! Que se dane as lendas, os mitos, as utopias de esquerda e direita! Prefiro a realidade sem sentido à fantasia pueril hegeliana! Mas minha filha prefere a medusa dos contos de fada, pois ela ainda vê o mundo da fantasia. Eis a diferença entre os adultos e as crianças, os adultos vivem da realidade da fantasia e as crianças da fantasia da realidade. Eis a nossa semelhança, adultos e crianças tateiam às escuras em busca de sentido. Mas a medusa urbana permanecia ali. Escorada ao muro de um Hospital Católico. Eu e minha filha passávamos com bolsas abarrotadas de guloseimas capitalistas. Ah, o capitalismo! Esse devorador de utopias! Esse Prometeu do homem hodierno! Ofereci pão ao pobre diabo, mas ele sorriu desdenhosamente. Surpreendi-me. Não estava com fome? E o fome zero? "Meu amigo, teu pão para mim é vão. Preciso de alimento capitalista para matar minha sede". Entendi sua necessidade e dei-lhe o suficiente para uma tragada bem profunda e fatal.