DORES E ALEGRIAS - CRONICAS HISTÓRICAS

DORES E ALEGRIAS

Aqui está bom. Ficou muito bem nesse lugar. Olhando para o infinito, Isaías traz um aspecto de esperança para esta nação colonizada e explorada, com tantos saques e riquezas levadas a troco de muito suor, muita dor e muito descontentamento. Esse olhar firme, denso, sério, com as barbas tão longas e um simples capuz, encarna a austeridade dos anseios de uma gente que não suporta mais o tronco e a humilhação do trabalho forçado. Pus nesse rosto toda a minha esperança de um tempo melhor para o Brasil. O enérgico Amós olha suavemente para baixo e reflete o caminho que segui, sereno, simples, como a observar calmamente para o caminho ainda a percorrer. Jonas, o que fugiu de Deus, olha para o alto. Quantas vezes eu também fui um Jonas descrente, crendo-me indigno de receber tantos castigos no corpo e na alma. Como Jonas, olho para o céu azul deste inverno, já no auge dos meus setenta anos de muita experiência e um sem número de obras espalhadas por todos os cantos destas minas. Olho, segurando o que restou de minhas mãos na base do profeta, fixamente para o céu, como ele. Percebo que é este o caminho inevitável, que Amós parece querer evitar. Minha vida está aqui. Cada um deles sou eu e meus sentimentos. Dores muitas, alegrias poucas, saudosismo dos meus tempos de juventude e um desejo quase incontrolável de partir, no afã de encontrar-me com meu Senhor, que retratei em diversos momentos, e que olha para todo o seu povo através das minhas imagens, que também o observa pelo olhar profundo e cheio de misericórdia, que sempre mostrou a todos que o procuravam.

Sinto tantas dores em todo o corpo, mas me dói também a alma. Não sei porque Deus me enviou tantos sofrimentos. Mas aprendi a lidar com as aflições. Tenho amigos que me levam onde eu quero estar e aprendi, que mesmo diante das dificuldades e limitações, posso contribuir para que as pessoas vejam o mundo de uma forma mais bela. Expressar a dor de Nosso Senhor Jesus Cristo e mostrá-la aos homens e mulheres que por aqui passarem agora e pelo tempo que há de vir, me faz sentir um homem mais leve e me ajuda a carregar tão pesado fardo com mais serenidade na alma. Aqui mesmo podem ser vistos todos os momentos de terrível agonia e sofrimento de Nosso Senhor. Em cada passo se tem a oportunidade de estar frente a frente com as imagens tão reais dos últimos momentos do Cristo. Até eu mesmo me surpreendo com tanta beleza e nem acredito que tais obras magníficas saíram de minhas mãos tão machucadas por esta terrível moléstia sem explicação nem cura que a cada dia consome um pouco mais de mim.

Sinto cansaço. Um cansaço tão grande que quase não consigo mais respirar direito dentro desse sobretudo que me esconde o corpo deformado, mas trabalhador. Dói até mesmo o sangue que corre em minhas veias. Meu rosto assustador assusta até a mim mesmo, e sinceramente, penso que não conseguirei mais trabalhar. Tenho trabalhado muito, incansavelmente durante todos esses anos. Ainda me lembro do barulho que deu aquele ousado chafariz de Vila Rica, quando eu sentia ainda no corpo as forças da minha juventude e a mente aberta à imaginação e vontade de ousar, do meu desejo de mudar o mundo com minha arte. Em cada portada, em cada imagem, em cada risco, estou eu lá contando minha história e as aspirações de minha alma.

Olhando essa paisagem vislumbrante, ao lado desse profeta sonhador como eu, e vendo ao longe a igreja de Nossa Senhora da Conceição, lembro-me da minha Igreja de São Francisco de Vila Rica. Que coisa linda, que espanto diário a todos os que ali passavam e admiravam tão monumental obra. Não sei se algum dia vão perceber minhas angústias e anseios em cada entalhe daqueles anjos e santos. Mas estou lá, inteiro, completo. Aquela igreja sou eu. Olhando as pedras desse chão abençoado pelo Senhor Bom Jesus, recordo-me com saudade dos tempos estudo e de convivência com meus amigos e do entusiasmo que eu sentia ao ouvir as ideias de liberdade que fervilhavam pelas ruas nas altas madrugadas, por entre as janelas dos casarões. Ah a liberdade! Ainda não veio, mas virá. Todos os sonhadores se foram daqui, e hoje não podem mais ver o que vejo em minha frente, são impedidos de conversas tão animadas como as que tenho com meus fiéis amigos, que com tanto zelo me carregam para onde quero ir, sem hesitação alguma. É tanto pra recordar, que meus olhos se lavam por dentro, em lágrimas que banham meu rosto tão marcado pela dor. O que me alegra é ver que cumpri meu dever e lutei pela liberdade a meu jeito. Minha arte é um grito à vida, mesmo com expressões de dores. É um grito à alegria, mesmo retratando tantos momentos tristes. Ela é sempre reflexiva e quero provocar mudança de atitude nas pessoas ao contemplarem meu trabalho. Devem ter gostado muito, pois todos queriam que eu fizesse uma imagem para sua capela ou sua irmandade. Fui arranjando tempo para todos, e até deu tempo para brincar um pouco, como na imagem de “São Jorge Romão” . Vila Rica inteira se riu dele e eu fiquei vingado. Mas com minha idade e maturidade não sei se deveria ter feito. Hoje não faria de novo. Mas foi engraçado. Que São Jorge me perdoe...

Esse horizonte de Congonhas é muito bonito de ver, e daqui do adro de meus profetas eu me sinto cada vez mais o Antônio Francisco Lisboa, que sempre gostou de respirar esse ar que só existe neste lugar alto, varrido por ventos suaves e de um frescor sempre de primavera, mesmo nesta tarde de fim de julho. Olho os profetas que olham para todos os cantos desta nação e sinto um alívio paradoxal à minha dor. Sinto que cumpri a missão de minha vida, e emocionado me despeço do meu trabalho. Fogem-me as forças consumidas pelo tempo. E se foram muito tempo.

Terminei minha grande obra e creio que ficarei vivo nela. Volto para meu lar e sinto que esta é minha última viagem. Mas se Deus me conceder mais um pouquinho de forças, eu ainda tenho imaginação de sobra para criar e vontade extrema de não parar nunca. Nesta viagem, quero que meus fracos olhos vejam cada montanha, cada casinha perdida neste mar de morros e cada sol que nasce e que se põe. Não há beleza igual. Junto com meus amigos, agora sentado para partir dou uma última olhada para trás. Vejo Abdias apontando para o céu, como a me dizer: vais para lá, em breve.

Notas - A imagem de São Jorge feito para desmoralizar o Sargento Romão numa procissão de Corpus Christi em Ouro Preto, por ser seu desafeto. A imagem encontra-se no Museu da Inconfidência.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 05/05/2011
Reeditado em 11/05/2011
Código do texto: T2951632
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