AS CHAVES
CHAVES
Agora tudo está ainda escuro. Parei por uns momentos diante da solidão e de mim mesmo ficando a pensar em tantas coisas que me seria difícil ou mesmo penoso descrever. Não deve ter sido muito tempo também. Logo estava eu já no quarto, luzes acesas e ouvindo o barulho das chaves na porta que ainda balançavam. Esperei que elas silenciassem. E enquanto isso meditava lá dentro da mais profunda intimidade que ouso esconder de mim mesmo. Não sei dizer o que se passa na minha cabeça. Deixo cair sobre a cama o livro que me acompanhava pelas ruas da cidade que eu vagava feito um barco à deriva. Entro em uma rua, saio na outra e por aí vou caminhando para chegar mais tarde em casa.
Tem sido assim nos últimos dois meses. Preciso repensar. Repensar os sentimentos, repensar a vida como um todo e tomar decisões que adio todos os dias e que ignoro serem necessárias. Andei por quase uma hora assim que saí do trabalho. Entrava e saía em uma rua qualquer. Não tinha caminho e parecia querer distanciar-me de algo. Só agora percebo, observando a almofada que fica no chão, que uso para ler deitado ou quando quero ouvir músicas na solidão dessa casa fria, que fujo daquilo que não se pode fugir: de mim mesmo. Vozes? Não há nenhuma. A voz que ouço vem das profundezas da alma inquieta que carrego dentro de mim, da alma desassossegada que não encontrou ainda as respostas mais simples da vida. Não ouço voz alguma que não venha de mim mesmo. Mas que falta me faz ouvi-las. Daí ligo a TV e resolvo esse problema. Vou pra cozinha, preparo um café enquanto repasso as decisões que não mais se afastam. As vozes vêem da TV e me trazem a sensação de que você ainda está aqui. Não sei se são notícias, se é apenas um filme, ou mesmo um desenho infantil. São vozes e é isso que me interessa. Elas servem para abafarem aquelas vozes gritantes, que não me deixam e que insistem em perturbar, em tirar o meu sossego. Chego cansado da rua e quero relaxar. Mas fica difícil. As vozes da TV, embora não me chamem a atenção, me distraem, faz retornar minhas vozes interiores que não gostam de se calar. Até quando eu não sei.
As chaves talvez sejam o segredo. Elas abrem e fecham portas, casas, abrigos. Elas anunciam o início e o fim das solidões dos homens. Permitem que encontremos a rua e as pessoas, o trabalho, a vida cotidiana. No entanto, paradoxalmente, nos retornam à solidão de casas silenciosas, vazias e fazem um pequeno barulho sempre, quando trancamos por dentro nossas portas. Parece um anúncio do início daquele período em que teremos que contar com nós mesmos. As chaves abrem e fecham expectativas, esperanças, sonhos e anseios. Depende da porta que usamos e também depende do lado que fechamos. Seu barulho anuncia sempre um fim e um começo. Um “lado de lá” e “um lado de cá”. Cabe-nos escolher o lado.
Não sei se eu não soube viver ou não soube querer seguir aquilo que meu coração indicava. Desde sempre eu tinha para mim mesmo que queria dedicar melhor minha vida. Sempre encontrei pouco sentido numa vida vivida sem relação com os outros, e por outros, quero dizer aqueles que precisam de algum tipo de ajuda. Uma vida para si é pobre e talvez, arriscaria dizer, indigna. No entanto, faço tudo o que penso e acredito, mas ao contrário. Creio que perdi um pouco o rumo. Há quem diga que seja crise de idade. Mas não me parece uma boa justificativa. Não me explica o que sinto e não me explica também o que penso. Porque agimos assim de forma tão diferente? Porque cremos de uma maneira, pensamos de uma maneira e agimos de outra?
Creio que ainda terei que escutar muitas vezes o barulho das chaves na porta. Não adianta não pensar, não adianta não querer. Só Deus sabe quantas ruas terei que percorrer e quantas esquinas precisarei dobrar para chegar mais tarde em casa, para ficar menos tempo só. O barulho das chaves remete sempre ao fundo d’alma, ao mais profundo “eu” do qual posso escapar por um tempo, mas não para sempre. E é até bom mesmo confrontar-me rapidamente com essas vozes que sempre afloram ao chamado das chaves de minha casa. Na escuridão do quarto e no silêncio da rua elas são soberanas. A solidão de agora em diante me persegue, me acompanha, monitora minha vida.
Tenho que conseguir outra chave. Há que ter uma que feche a porta dessas vozes insistentes e destas interrogações permanentes. Há que ter uma outra, que também faça barulho, que anuncia sua chegada e quebre esse silêncio de morte e esse frio que emana das paredes brancas como gelo. Essa chave é a saída, é o fim de muitas chegadas em casa e de muita melancolia que sai desse quarto. São chaves de segredo, como aqueles dos cofres. Ninguém sabe qual é. E tem um probleminha extra: eu também não sei.