Apenas uma bússola

Lembro-me bem de sua cara quando descobriu notícias do mar. Havia sido fuzileiro naval e hoje vivia em casa. Somente em casa. Às vezes ia até o portão para gritar contra essas bicicletas com alto-falante que infestam as ruas. Elas interrompiam momentos maravilhosos e até íntimos. Que coisa horrível! Em seguida voltava para dentro do lar. Ia cuidar do aquário. Ele e o gato davam lições de atenção aos peixinhos. A vida é assim, sempre dois tipos de atenção.

Na rua era considerado um tipo bom. Amigo leal, desinteressado. Sempre no mesmo bar, na mesma cadeira. Homem e jornal. Cinzeiro, garrafa e copo. Morava a hora azul no copo de cerveja. Bebia aquela cerveja gorda com um minuto de espuma para lamber os beiços. Repleto de bonomia. Tinha de seu o fantástico. Seu copo de cerveja era um aquário onde moravam peixinhos multicolores e fosfóreos. Ninguém bebia cerveja com peixinhos como ele, colocando sal na cerveja. Petiscos aos amigos marinhos.

Disseram-lhe que havia uma guerra. Que acima da linha do equador estavam os piratas atacando esquadras. Navios mercantes que por ventura navegassem perto do Trópico de Câncer. Bradava.

- Vamos atacar! Torpedo nesses balordos.

Morreria como a melhor decisão. Morre-se antes e ele havia morrido primeiro quando abandonou suas aspirações de violonista.

Após o enterro o sobrinho abriu as gavetas e pesquisou em todos os detalhes alguma luz. Era entomólogo. Estava sonhando diante da caixa com insetos. Magro na fotografia lembrava um louva-a-deus verde. Seria o tio louva-a-deus? Era mais um caso de tio nobre que enriquece alguém da família. O único sobrinho. Tinha trinta e quatro anos. Vasculhou tudo até encontrar ao lado das apólices a detestável coleção de rolhas. Bateu a porta e nunca mais entrou naquela casa levando consigo apenas uma bússola.

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Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 05/05/2011
Código do texto: T2950657
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