No fundo da gaveta

Sempre achei vovó Matilda uma mulher misteriosa. Discretíssima, e talvez por isso eu via nela certa aura de mistério.

Desde que ficara viúva morava sozinha. Não quis deixar a casa onde nascera, crescera e tivera seus dois filhos: Luísa e Francisco, meu pai.

Agora a casa pertencia a mim, conforme desejo expresso no testamento de minha avó. Não só a casa, mas todos os objetos que nela estavam. E ainda havia um gatinho persa, que era a minha perdição.

No entanto, o que mais havia me fascinado, e isso desde que eu era criança, foi a herança literária. Nunca fui apegada a outros bens materiais, mas confesso que os livros eram minha maior fraqueza. Digo mais: meu único vício.

Já na fase da adolescência eu deixava de comprar qualquer coisa que fosse somente para ter o prazer de entrar em uma livraria e adquirir um livro novo. O cheiro do livro novo é algo inebriante.

Nunca gostei de livros usados, que foram manipulados por outras pessoas. Entretanto, a exceção ficava por conta dos livros de vovó Matilda. Isso porque ela também pensava como eu a respeito dos livros. Aprendi com ela que livros são de uso pessoal e que não devemos emprestá-los. Devemos fazer anotações neles – de preferência a lápis – grifar sempre algo que nos chame a atenção, demarcar territórios, ou seja, espaços de leitura.

E eu repassava tudo isso ali, sentada na cama dela, desvendando segredos.

Havia acabado de chegar do funeral de vovó Matilda. Uma cerimônia simples, como fora a sua vida. Assim ela quis. Assim o fizemos.

Coube a mim ir até a casa, avaliar a situação do imóvel, decidir o que fazer com tantas coisas acumuladas durante décadas.

Vovó faleceu poucos dias após completar noventa anos de extrema lucidez e mobilidade. Era dona de sua vida e rainha absoluta de seus domínios: a velha casa e seu jardim repleto de folhas, flores e algumas frutas, como a imponente mangueira que descansava há anos naquele quintal e quando florescia eu ficava horas e horas admirando sua beleza esplendorosa. Outra imagem poética que sempre carreguei no baú de minhas memórias.

Papai queria que eu me desfizesse da casa, mas havia algo que me atraía. Não era um mausoléu. Era o castelo da rainha Matilda, que agora cedia o trono e seus domínios para mim, sua neta convertida algum dia em princesa. E assim seria.

Prossegui em minha tarefa de descobrir os segredos que vovó Matilda guardara.

Não me senti, em momento algum, como uma intrusa. Eu sabia que tinha algo especial para descobrir e guardar. Sim, eu seria, de agora em diante, a guardiã dos tesouros de minha avó.

No fundo de uma das gavetas da cômoda uma caixa de madeira envernizada chamou minha atenção. Ao abri-la dei de cara com um pacote amarrado por uma fita de cetim rosado. Eram cartas. Centenas delas. E todas de um único remetente cujo prenome era Otávio.

A carta que estava em cima do pacote era datada de abril de 2011. Mês passado, pois. Apanhei, então, a última. Qual não foi minha surpresa ao ver a data impressa no carimbo dos Correios: 1939.

Inacreditável, mas as datas ali impressas me mostravam que vovó Matilda havia se correspondido regularmente com o Otávio, desde que completara dezoito anos. E foi exatamente aos dezoito anos que ela se casara com vovô Guilherme. Foram, pois, setenta e dois anos de cartas trocadas. Mais de sete décadas...

Perguntas e perguntas vieram a minha cabeça. E, para respondê-las, eu tinha que ler toda aquela correspondência, juntar o que fora escrito para entender a razão de todo aquele enlace. Parecia que eu estava prestes a ler um romance histórico. Ou melhor, uma história de amor muito antiga que não fora simplesmente cristalizada no tempo. Pelo contrário, as datas recentes das últimas cartas trazia o vigor de uma narrativa amorosa que atravessou toda uma vida.

Resolvi ler a primeira carta, aquela do ano de 1939.

Meu querido e amado Otávio,

São 17:00 hs. do dia 25 de novembro de 1939. O tempo está nublado, assim como os meus olhos. Parece que a Natureza está de luto por nós dois. E isso em dia de festa.

Lá fora explode uma guerra e aqui dentro, no fundo do meu coração, também há estragos e dor, muita dor.

Essas pequenas manchas que apagam algumas palavras, ou que pelo menos as deixa embaçadas, são as lágrimas que por ti derramo. Não, minto. Choro por nós dois.

Hoje é o dia do meu casamento. Às 19:00 hs. estarei entrando na igreja, levada pelo meu pai, para ser entregue a um outro homem. Sinto muito, mas não fui capaz de romper com tudo para fugir com você. Apesar de todo o amor que tenho por você não pude ter coragem suficiente para ir contra as decisões e escolhas do meu pai com relação a mim.

Quando você estiver lendo essa carta, provavelmtente eu já terei dito sim ao meu futuro marido, o Guilherme.

Quero que você saiba que jamais o esquecerei.

Agora o aperto que trago no peito só me permite dizer que lamento.

E adeus.

De sua amada,

Matilda.

Mal consegui terminar a leitura da carta, pois meus olhos transbordaram. Chorei em comunhão com minha avó. Senti e pude perceber a dor que ela deixou transparecer na carta acima.

Pude ler a carta escrita por minha avó porque ela havia sido devolvida com a resposta escrita ao fim de sua assinatura. O Otávio dizia que também lamentava muito o triste desfecho de um amor tão forte, mas que a amava tanto que era capaz de entender a sua decisão em casar com o meu avó.

O curioso dessa troca de cartas, como pude observar, foi que todas as respostas foram dadas ao final das cartas escritas por minha avó. Pelo que pude entender, o Otávio não ficava com as cartas. Coube a vovó guardar as provas do “delito”.

Nunca conheci uma história dessas. Nem mesmo nos romances que li. E foram muitos.

Passei dias trancada naquele quarto, juntando as peças de um quebra-cabeça muito antigo.

Com o avanço da leitura soube que as cartas que minha avó escrevia eram todas entregues ao Otávio pelas mãos de minha tia-avó Rosália. Nunca foram enviadas via Correios. As respostas do Otávio sim, eram colocadas nos Correios, mas o endereço de entrega era o da casa da tia Rosália e, mesmo depois de sua morte, assim continuou.

Lendo as cartas pude ir juntando os retalhos de uma colcha chamada amor. Sim, era amor. Um amor que conseguiu sobreviver por décadas. Não foi uma paixão, pois sua chama se extingue com o tempo. Era amor, simplesmente amor. E não importava se houve ou não traição, o que me fez recordar da Capitu de Machado. Entretanto, pelo que li, Otávio e minha avó nunca se encontraram depois que ela se casou.

O Otávio não se casou. Permaneceu fiel ao amor que tinha – e era correspondido – por vovó Matilda. E ela contou toda a sua vida, como se escrevesse um diário de amor, para o homem que conhecera em sua juventude. A sua maneira ela também foi fiel ao Otávio.

Através de todas aquelas narrativas vovó Matilda contou sobre seu cotidiano, as frustrações, alegrias, lembranças. Mas nunca deixou, em momento algum, de reafirmar o seu amor pelo Otávio.

Ela também falava sobre o meu avó Guilherme. Também o amava, mas de uma forma diferente. Agora eu entendo quando ela me dizia que existem várias formas de amor. Ela sabia disso porque tinha vivido e conhecido duas formas de amar.

Quando ficara viúva ela escreveu para o Otávio. Em sua resposta ele lamentou a perda de minha avó e suscitou a possibilidade de os dois se encontrarem. Isso foi há cerca de dois anos. Vovó Matilda escreveu outra carta dizendo ao Otávio que há muito tempo o amor dos dois havia ficado preservado do mundo, mas que era, agora, apenas um amor vivenciado através de cartas. Ela não queria quebrar a magia, nem perder a imagem que tinha dela mesma e do Otávio quando eles tinham apenas dezoito anos. E assim eles nunca se encontraram.

Essa constatação me levou a pensar que talvez ele não soubesse da morte de minha avó. Na última carta que ela lhe escreveu disse que estava cansada e sentia que sua hora de partir estava próxima. Ela sempre me dizia que gostaria de saber se as pessoas sentem quando a morte está rondando. Eu penso que ela soube. Talvez por isso mesmo essa última carta estivesse carregada de nostalgia e emoção como se fosse uma despedida.

Otávio respondeu essa última carta escrevendo palavras de ânimo e conforto para a minha avó. Ao final da escrita, disse que a mesma sensação de que a partida dele também estava próxima era presente e, uma vez mais, reiterou o seu amor por ela.

Otávio morava em uma outra cidade, conforme vi pelo endereço nas cartas. E era uma cidade bem distante da nossa.

Pensei que eu teria o dever de lhe informar sobre o falecimento de vovó Matilda, mas enviar uma carta ou um telegrama era muito frio, impessoal.

Resolvi descobrir quem tinha ficado encarregado de entregar as cartas de Otávio a minha avó depois que tia Rosália havia falecido.

Tia Rosália teve somente uma filha, minha prima, que se chama Nina. Ela ainda morava na casa que tinha sido de tia Rosália. Fui até lá. Contei à Nina o que havia descoberto. Para minha surpresa ela disse que tia Rosália, pouco antes de morrer, havia lhe contado o segredo e passado a chave do mesmo, ou seja, Nina ficaria responsável por entregar as cartas à vovó Matilda. E assim o fez.

Conversando com Nina chegamos à conclusão de que eu deveria procurar o Otávio para dar a triste notícia. Dois dias depois peguei meu carro e dirigi até aquela cidadezinha do interior onde ele se estabelecera desde o casamento de vovó.

Era uma cidadezinha linda, repleta de casas coloridas, com mulheres observando o tempo na janela ou conversando com outras em calçadas de pedras muito antigas. Típica cidade do interior. Ali o tempo parecia ter sido congelado como a paisagem retratada em um quadro.

Não foi difícil encontrar o Otávio. Ele morava em uma casinha meio afastada do centro da cidade. Era branca e tinha um belíssimo jardim rodeando a casa. E havia uma mangueira. Impossível não pensar em vovó Matilda. Ela estava ali.

Bati palmas em frente ao portão de ferro e pouco depois um senhor de cabelos brancos feito algodão saiu e veio até mim.

Assim que nos cumprimentamos eu me identifiquei como a neta de Matilda. Ele apertou a minha mão e convidou-me para entrar. Fui recebida por um gatinho persa. Novamente percebi a presença de vovó naquela casa.

Otávio pediu para que eu me sentasse. Ofereceu um chá de maçã e antes que eu dissesse qualquer coisa ele tomou a iniciativa, olhando firme para os meus olhos:

– Você não precisa dizer nada, minha querida. Eu sei que Matilda se foi.

Nossa! Nem sei como não deixei a xícara que estava em minhas mãos se espatifar no chão de ladrilhos, mas não pude segurar as lágrimas e os soluços.

Otávio tomou a xícara de minhas mãos trêmulas, segurou-as entre as suas e me acalmou.

Aquela foi a melhor tarde de minha vida.

Fiquei horas a fio conversando com o Otávio. Conheci naquelas horas a avó Matilda que em toda a minha vida não havia conhecido.

O que posso agora dizer, para finalizar essa narrativa, é que saí daquela casa com a alma leve e a certeza de que um amor como esse é possível. Tão possível como foi o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, personagens centrais do romance “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez.

E no fundo da gaveta eu pude encontrar o registro desse amor que nem mesmo o tempo e a distância foram capazes de apagar. Ele simplesmente sobreviveu entre as páginas escritas daquelas cartas.

Daquelas cartas de amor tão antigas quanto o próprio tempo.

Rita Venâncio.

Rita Venâncio
Enviado por Rita Venâncio em 04/05/2011
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