Castelo

Já conheço o Castelo uns 25 anos. Não refiro-me ao belo bairro do Centro da Maravilhosa, mas ao sr Castelo. Ele sempre exigia que o chamássemos de Castelo, o "senhor" poderia até ser omitido, mas Castelo era uma imposição. E Castelo sempre soube impor as suas vontades, pois sabia ser um ditador gentil. Isto é possível? Bem, Castelo conseguia.

Castelo é um sujeito alto, magro de cara comprida. Cabelos tipo Caxias, a mesma barba, a mesma imponência. Até doente, Castelo tentava manter-se alinhado e animado. Ele sempre dizia: "O ânimo é a maior virtude dos espíritos prontos". Não, não, Castelo não é religioso, ao contrário, tornara-se um cético. Uma vez disse-me que fora por causa dum tal Pirro De La, não sei o que. Acho que alguma cisma filosófica, pois sempre o via com um livro na mão. Castelo é um desses sujeitos que trocam a carteira por um livro. Uma vez o encontrei na Rua do Ouvidor e ele me disse: "Filho, me empresta a passagem, pois esqueci a carteira". Emprestei-lhe o dinheiro e percebi que tinha, às mãos, um livro que falava de um tal Zaratustra.

Bem, meu amigo Castelo é um sujeito que não podemos chamar de idiota. As vezes ele até parece um cara sem jeito, mas idiota jamais. Conheci Dostoievski por causa dele. Na época ele lia "Crime e Castigo" e conversamos muito durante a travessia da Baía com destino a Niterói. Castelo mora em Niterói. A velha Praia Grande. Ao chegarmos a Niterói já estávamos amigos. Tão amigos que me emprestara o livro. Li imediatamente. Desde daquele dia Raskolnikov jamais saiu de minha mente. Seu drama. Sua consciência. Sua ética. Suas virtudes. Este caminho foi me mostrado pelo velho Castelo.

Quando digo que Castelo não é um idiota, quero dizer que quando você o conhece e tem a oportunidade de travar conhecimento - para usar a própria linguagem dele - com ele, você percebe que ali, diante de você, encontra-se um sujeito que tem por lazer a embriaguez diária de vida, de conhecimento, de letras, de experiência. Nada mais se faz necessário, apenas uns míseros trocados de aposentadoria para poder atravessar a Baía e trocar umas palavras vadias e deliciosas com pessoas que ainda se admiram com a existência.

O estilo de vida do Castelo o fez um exímio contador de histórias. Se verdadeiras ou não, não importa, importa que são deliciosas e inspiradoras. Mas, veja bem, jamais deixe-o pensar que você acha as histórias nem tão verdadeiras assim, pois Castelo ficaria muito triste.

Certa vez ele me contou que vinha caminhando pela populosa Praça XV, tinha deixado o catamarã naquele momento, e quando foi atravessar a bela Primero de Março, uma mão estranha e trêmula segurou seu braço. Aquele momento o tirou de suas divagações e o transportou para a realidade urbana da Terra de Vinícius. Era uma senhora, uma velha, que tentava capturar um braço amigo para que conseguisse atravessar a confusa e antiga Rua da Direita. Ela tremia, não de medo, mas de velhice. Até porque, "o medo pertence àqueles que enxergam muito do limitado e pouco do ilimitado" - bem, era assim que Castelo falava, sei lá o que isso quer dizer. Castelo parou e voltou-se para aquela geração tão distante e olhou em seus olhos e, viu, como o tempo nos desgasta. Ele dizia: "o tempo desgasta o corpo, mas há algo inesgotável..." Nesta parte ele parava, tossia uma tosse nervosa e pedia para mudar de assunto. Castelo olhava aquela face doce e via que de velha não tinha nada, pois o brilho de seus olhos exigiam vida. Aquela suposta velha deu-lhe um sorriso malicioso e revelou um desejo de atravessar para o outro lado, pois queria agora experimentar delícias que estavam naquela outra calçada. Castelo a conduziu com muita surpresa e gentileza. Ficara intrigado como aquela mulher ainda desejava a vida e a morte nitidamente já estava bem próxima. Talvez aquele seria seu último dia. Do outro lado da rua, já na antiga Rua do Cano - hoje Sete de Setembro - a velha senhora segurou com as duas mãos o rosto do Castelo e deu-lhe um beijo terno e inesquecível. Castelo ficara surpreso mais uma vez e via a mulher sumir na multidão da procissão urbana da Rua da Assembléia.

Ficara ali um tempo. Olhou o belo Palácio Tiradentes. Olhou o Paço Imperial. Já havia olhado diversas vezes aqueles prédios, desde a sua mais tenra infância; mas aquele dia olhava como se fosse a primeira vez. Olhara de maneira diferente. E aprendera que aquilo que era inesgotável no ser era como os monumentos que revelam a história de gerações. Tentou de novo achar aquela mulher, mas impossível. Castelo me dissera que este acontecimento foi a única vez que sentiu-se abençoado.

Aprendi a gostar das histórias de Castelo. A maneira que ele as conta é fascinante. Jamais estas letras poderão expressar da maneira mais exata seus contos, pois só o Castelo da Baía pode contá-las. Quarta-feira será um dia legal, pois marcamos um encontro para atravessarmos a Baía. Certamente contarei uma nova história dessa figura tão amável.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 18/11/2006
Código do texto: T294946
Copyright © 2006. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.