A santa rotina ou a máquina de fazer pobres
Aquela santinha era do Convento da Ladeira de Santa Tereza. Ela costuma descer a Ladeira e seguir em seu caminho de penitência. Na frente dos Arcos da Lapa se forma uma fila imensa a sua espera. Esperam pelas suas mãos suaves, sua fala mansa e sua apetitosa sopa. Enquanto eles comem, ela conta histórias das Escrituras. Aquilo é ser santa. Como toda boa santinha, ela é pobre, ela é casta. Orgulha-se de sua condição. Não é como aqueles protestantes. Aqueles protestantes dono de padarias, dono de mercados, ricos, comilões, com investimentos em bancos, ações, propriedades. Estes são os falsos cristãos. Envergonham o Senhor. Mas, ainda bem que Deus tem as santinhas da Ladeira de Santa Tereza. Aquelas sim, aquelas são santas. Prezam a rotina de suas tarefas. Quando a santinha descia com o sopão havia apenas umas seis pessoas na fila, mas agora estas pessoas já chegam a cinquenta. Tem o mendigo que fica na esquina dos Inválidos. Tem os mendigos da Gomes Freire. Tem a louca da Riachuelo. E muitos outros. É impressionante como a santinha tem o dom de encontrar tais pessoas. Eles se multiplicam. Qual os Hebreus no Egito. No fim da noite ela se recolhe em sua cela. Ali sozinha agradece a Deus por mais um dia em sua presença. Pede a Deus forças para continuar sua missão. Que ela possa encontrar cada vez mais pessoas mendigas, miseráveis. E assim transmitir bondade, carinho, abrigo, amizade. Agradece a Deus por não ser como os protestantes. Esses abomináveis seres que proliferam a riqueza, repudiam a pobreza. Mal sabem eles que repudiam a única virtude. Eles cortejam o progresso, o desenvolvimento, amantes do capital, da globalização, defensores da propriedade e inimigos dos valentes movimentos de reforma agrária. A santinha adormece e sonha profundamente. Sonhos de delícias. Sonha com o Paraíso. Muita fartura. Muita felicidade. Lugar sem necessidades, sem miséria, sem maldade, sem protestantes. De manhã bem cedo acorda e se apronta para sua velha rotina. E desce a Ladeira em busca de seus pobres que a cada dia se proliferam ao seu redor.