Crônicas de uma vida não anunciada - O milagre da vida
De lá, vieram frescas notícias: um novo choro de criança se fez ouvir. É o brado dentro do ciclo vicioso da pobreza humana, sem fronteiras para mudanças de vidas melhores. Fartura do fardo de novas criações para a continuidade da miséria na condição de vida mais dura que um ser vivente possa suportar: carência material, falta de recursos econômicos e carência social. Esta última, a completa dependência e incapacidade de se tornar alguém no metier de humanos cada vez mais egoístas - pavões esplendorosos que não olham para a lamúria dos pés. Os criados se tornando criadores – declínio que nos leva a um niilismo constante quando o sonho é o fim da miséria humana.
Naqueles tempos, ela veio ao mundo no romper da aurora. O romper do dia do poema lusitano - “... São as mais belas horas que existem em minha vida / Ver a madrugada nascer florida” - nunca traduzirá o nascer de uma vida não anunciada. As estrelas, talvez, já recolhidas em seus brilhos para não presenciarem tamanha loucura, consigam – no futuro- mostrar ao mundo que uma pessoa iluminada tenha conseguido nascer em meio a situações tão insanas.
- Mãe, cê tá sangrando... – Sobre o colchão mofado, a mãe arrebentando as entranhas em grito; loucura e dor num momento inesperado. Os olhos espantados de Sirizinho não encontraram o pai nem a irmã.
Naquele instante, no “rebentar as águas”, ela deu seu grito que queria viver. Sirizinho, assustado e sozinho, ouviu o primeiro choro em seus braços. Esse é o milagre da vida em meio a inocências perdidas. Sangue, fluido amniótico e odor de álcool quebrando paradigmas da continuidade da existência. É a pobreza não sua singularidade mais crua: a falta de dignidade humana até na hora de nascer, sem ao menos uma cena barroca com parteira-feiticeira ou – hodiernamente falando – uma “doula” para ampará-la.
- Mais uma pra sofrer... – No dorso da dor da outra irmã - estuprada e aliciada desde pequena - a frase parecia cavalgar de boca em boca, mostrando que a raiz maior da miséria humana é a própria segregação social dentro da segregação social já pré-estabelecida: o pobre contra o pobre!
Sirizinho e a irmã tornaram-se siameses na alma. Parecia pacto de vida – um cuidando do outro. Já os encontrei unidos – na dor e na fome! Agora, muito tempo depois da separação, um lume de alegria volta a brilhar nos olhos do agora já quase adolescente. Enfático, não esconde sua alegria em mostrar os olhinhos da pequena criança que guarda na foto do seu suado – mas comprado – celular.
- Parece com quem? – Olho e apenas sorrio, relembrando um poema guardado na memória: “Toda criança que nasce/ parece a primeira estrela/ amor promessa/ brilhando no céu do tempo”
O tempo não para - o ciclo da vida continua - agora podemos chamá-la de Tia Luana.