ESSÊNCIA PRESUMÍVEL
Estive no início do ano em Salinópolis, estância hidromineral, cidade litorânea de mil encantos, foram dias de ampla reflexão. Fiquei em contato obrigatório, por questões de trabalho com pessoas as quais nunca caminharia espontaneamente em suas direções, vesti-me de minha melhor capa de boa vontade, refleti sobre situações já vividas e tentei juro que tentei. Já nos primeiros dias em rodas de expositores me senti um analfabeto ou pelo menos alguém incapaz de participar da descontração que havia entre eles, pelo simples fato de não saber do que estavam falando, expressões distintas do meu vocabulário usual, algo como, “Vetron”, “arrocha” etc. que notadamente fazia parte do contexto em que estavam inseridos. Mesmo assim procurei me desarmar da minha velha mania dos estereótipos, precisava contornar isso sem parecer soberbo, nem muito a vontade. Dia de ano novo foi um horror, todos bebiam e pulavam ao som de músicas de Goiás, quando rompeu às 24 horas me abraçaram como se fossemos conhecidos de toda uma vida, a impetuosidade com que me apertavam chegou a me incomodar, não consegui ficar mais de quinze minutos de 2011 em suas companhias. Noutro momento quis me redimir por ter fugido e aceitei ir a uma “balada” onde o “Super Vetron” iria tocar e isso parecia realmente ser muito importante, pagaram meu ingresso e eu jazi por torturantes trinta minutos naquele lugar. Não conseguia me mexer, suava por todos os poros, não entendia o que me perguntavam, tampouco conseguia me fazer entender, fiquei assustado, nunca vi tanta gente por metro quadrado, estavam espremidos em um lugar com o simples propósito de permanecer lá.
Definitivamente não posso forçar, talvez até eu não tenha tentado o bastante para conseguir, ou não tenha ingerido a quantidade suficiente de bebida, mas foi até onde eu consegui ir e foi um grande passo. Devo admitir que não fiz grandes e sólidas amizades, dividi meu tempo com o trabalho na exposição e muita contemplação daquela exuberante estância de belas praias e natureza privilegiada. Embora a relatividade esteja presente em todas as questões, não consegui encontrar o contraponto do “Super Vetron”.
Aquelas pessoas da Feira de Expositores eram, ou pareciam muito amigas entre si, tinham objetivos e conceitos em comum, pareciam ter conseguido uma unanimidade nivelada, onde a mágoa era resolvida bem claramente e as traições pareciam banalidades, tudo estava sempre muito bem, afinal, em seu inimigo você pode confiar, ele nunca vai te trair, quem te trai é o amigo.
Iniquidade e inobservância existem em todos os níveis, não tenho a coruja da sabedoria nem a cegueira da justiça, apenas me posiciono aonde acho que respinga menos quando sinto a proximidade do temporal.
O fato de o fulano me ser apresentado, ou apenas notado portando em uma das mãos uma gaiola onde um pássaro serelepe alça vôo de quinze centímetros, já o descreve e depõe contra qualquer posição que ele venha a assumir doravante, é diferente de tê-lo conhecido em uma situação onde ajudava o cadeirante a transpor um obstáculo e em seguida juntado a gaiola, por quê? Não sei, talvez a máxima da primeira impressão, mas é assim que funciona minha preconceituosa escala humana. Muito provavelmente os expositores não sejam nada daquilo que registrei, só não os encontrei antes ajudando o cadeirante. Não consegui capturar-lhes a essência.
Quando Sartre se refere à essência humana, notadamente há uma conotação existencialista e ele, como ateu convicto, não aceita a precedência dessa essência por não acreditar que um ser divino nos tenha projetado com um propósito, o que de certa forma eu concordo ou do contrário nosso livre arbítrio seria apenas quimérico, mas já que a relatividade ainda para mim é mais abrangente, acredito sim que o propósito pode estar justamente na forma que nos foi passado o objetivo a se completar, agora, de que forma ou quantos séculos levarão para fazê-lo, é de responsabilidade exclusivamente do homem, aí eu concordo com a essencialização no decorrer das vidas. O espírito para mim, não é a essência, ela é o que o compõe por isso é mutável com a evolução, não podendo precedê-lo. Não posso abrir mão de imaginar que existe alguém comandando tudo isso, porém, não deve controlar as ocorrências. Foram passadas aos humanos as regras de condução de suas vidas e um manual a ser seguido, no mais, nada podemos pedir ou suplicar, apenas responder por acertos e erros, responsabilidades e devaneios, já que em cada ato não jogamos unicamente com nossas cartas. Cada movimento para esquerda ou à direita influencia tudo que nos cerca, por vezes invadindo o arbítrio alheio, deixando seqüelas irreparáveis, que certamente de uma forma ou de outra, independendo da concepção que se tenha, serão purgadas.
Podemos ter sido criados com um propósito, que realmente não sei qual é, mas há um objetivo final, nem que seja estrumar a terra, talvez estejamos em fase de formação na escola de anjos, mas o fato é que embora tenhamos um objetivo proposital, também temos consciência de nossa existência e isso nos faz mal, daí que acreditarmos num ser supremo é cômodo, sempre teremos alguém a quem recorrer e culpar. Não somos coisas, as quais são criadas com um propósito e levam sua vida útil a servir a este propósito. Sua essência de servir apenas a este propósito foi determinada antes de sua concepção, não foram criadas, foram inventadas. Um computador, por exemplo, foi inventado para auxiliar o homem em suas tarefas, embora seja uma máquina inteligente, não tem consciência de sua existência e não poderá nunca se definir, ou definir sua essência ao longo de sua vida, sua essência já foi artificialmente definida em sua concepção, ele nunca poderá mudar isso, pode até ser que ele nunca cumpra seu papel simplesmente porque nunca saiu da prateleira, mas se precisar ele o fará, basta que mãos hábeis possam manipulá-lo.
Não acredito em um ser supremo manipulador, seria cruel demais nos fazer pensar que decidimos alguma coisa e no fundo apenas seguimos um roteiro pré-determinado. Esse Deus seria no mínimo sádico.
Tudo isso é só uma reflexão, ou uma teoria, como queiram, não tenho conclusão alguma tampouco intenção de convencer. Pra falar a verdade, nem a mim eu convenço. Amanhã depois de refletir longe do teclado, vejo-me cheio de culpa por indagar demais, por pensar demais, por abusar do arbítrio que foi outorgado e que preciso acreditar que assim o é. O fato é que não consigo escrever sobre frivolidades ou casuísmos sem que a profundidade se exacerbe e a relatividade se oponha a idéia transformando tudo num grande “pode ser”, até que se prove seu valor absoluto, porém como aparentemente isso vai ser gradativo a depuração, fico eu com a dualidade de minhas idéias presa a relatividade apresentada pelos fatos efêmeros da vida em curso.