ESPIRITUALIDADE E DEGRADAÇÃO
Tive uma visão de ambientes umbralinos em plena cidade, quando a dignidade passa a ser apenas uma palavra pronunciada ao vento para aquele que vive o momento de purgação em plena avenida.
Quando assisti “Resident Evil” onde a cidade dos mortos vivos parecia realmente possivel por toda a trama construída através de uma droga, pensei comigo mesmo que loucura o estágio que uma droga pode levar uma pessoa, mas ainda bem que tudo é apenas uma obra de ficção. Pensei assim até dar de frente com uma rua tomada por usuários de crack, caramba! Eu que sempre admirei na figura de celebres autores suas visões futuristas, e nas idéias dos criadores de personagens antológicos como j. Hanna e W. Barbera que são gênios. Vejam Os Jetsons, por exemplo, que em tempos de telefones pesados com um discador, já projetavam o celular, em tempos de grandes rádios de pilha, mostravam comunicação via “videofone” que nada mais é do que a internet de hoje e mais os smarts fones de última geração que temos às mãos, as escadas rolantes pareciam muito loucas, já estamos buscando fontes alternativas de energia para os carros poderem flutuar, temos protótipos, estou falando de 50 anos atrás e eu sempre adorei viver para ver a realização dessas idéias fantásticas, porém o “Resident Evil” foi demais, uma coletividade de verdade zumbizando pelas ruas, andando em círculos, sem perspectiva se quer de amanhecer. Garotas sujas, doentes, cadavéricas, irreconhecíveis e grávidas, meninos, quase crianças de olhares absortos a espera que dez ou quinze minutos se esvaiam para retomarem a rotina dos cachimbinhos. Os umbrais se multiplicam e se apresentam de várias formas, o que antes só conhecia no cinema ou descrito nos livros hoje me consterna.
A mendicância que assolada pela noite espreita os arredores, a maioria não tem mesmo para onde ir, conversei com alguns, tentei arrancar-lhes um sentido e o que ouvi foi a personificação da resignação.
Depois da queda a humilhação e o título de escória, misturado aos dejetos do cotidiano, perambulam pelos guetos, o mau cheiro exala e incomoda, os cães sarnentos servem-lhes como companhia e cobertor, existe toda uma trajetória percorrida pra chegar aonde chegaram, uma história que nunca foi contada e que se perdeu da memória, a família são os iguais, a cachaça a única saída virtual, por algumas horas ou pela maioria das horas a única saída. Seu Zé, ex-garimpeiro, perdeu totalmente o prumo, o rumo, a referência de vida, só sabe que hoje é dia da sopa – “O pessoal do espiritismo vai passar por aqui, tem pão também, amanhã eles não vem” – No dia seguinte recomeça a contagem para o dia da sopa – “Às vezes o pessoal da prefeitura dá café... mas aqui é melhor do que lá no Aurá, (aterro sanitário metropolitano) lá é cheio de regras, cada um tem seu território e os carros que chegam já tem dono... a casa de papelão foi derrubada e o zinco que cobria foi roubado. só uma vez gostamos de lá, foi no tempo que deu a febre no gado, o fazendeiro jogava o boi lá e colocava em cova rasa, daí era só esperar que os homens fossem embora pra fazer a festa, era um verdadeiro banquete, nunca comemos tanto, parecíamos uns reis, pena que só durou três dias, não por falta de carne, mas porque ela já tava ficando preta e fedendo,... o fedor até que não era tão grande o problema maior era ter que lutar com aquele monte de urubus pelo naco maior ou sem osso. Outro dia achamos uns remédios lá, o pezão que era enfermeiro disse que tava fora do prazo, mas todo mundo foi medicado, não sei pra que servia, mas tomei o meu nas horas certinhas, também tem tanta doença por lá que pra alguma deve ter servido”.
A noite, o frio, e a solidão batem impiedosas, ninguém quer ir para os abrigos, temem pelos “bens” e animais de estimação. Uma minoria sobrevive ao inverno e continua até o dia que fizer parte da maioria que sucumbe, não acorda mais, vira estatística.
Esse é um retrato de uma rotina comum entre nós, tão comum quanto o ato de acender a luz, ligar a TV, escolher o programa, abrir a geladeira e não saber o que comer por excesso de opções. É tão comum morrer quanto viver, a linha é tênue, a diferença é que alguns conseguem viver com dignidade e outros nem morrer com dignidade conseguem. Os problemas que temos são os mesmos que eles têm só que os pólos são invertidos, às vezes o nosso maior problema é -“com que roupa eu vou”- e por ironia o deles também, -“o que vamos comer hoje”? Eles também fazem essa pergunta. Mas além, os nossos pequenos descuidos, são grandes carências para eles como quando no porta-treco esquecemo-nos durante dias aquelas moedas, ou quando o mais novo se recusa a comer por causa do pepino ou da cebola...Devia existir um modo de direcionar esses nossos desleixos a um lugar especializado em recolher tudo que sobra, uma bolsa de supérfluo, quem sabe não seria a melhor opção para todo o mundo, o mendigo seria beneficiado pelo alimento, a vestimenta, o remédio etc. e nós certamente acharíamos sobrando por lá um pouco de sensibilidade, companheirismo e amor ao próximo