Para tudo, um preço

Já faz um tempo que me encontro ajoelhado sobre os azulejos do banheiro. Seu frio corre meus joelhos, causam-me calafrios, tremo independente do calor que me incendeia. Meu braço esquerdo atravessa horizontalmente a abertura oval do vaso, minha cabeça sobre ele, respiro daquele ar fétido e estagnado em longos e dolorosos haustos. A cada inalação a ânsia revolve em meu estômago, que queima e urra de dor a cada refluxo. Minha cabeça parece querer implodir, de olhos cerrados, a agonia que vara minhas têmporas toma forma dum facho luminoso na escuridão. Mediante homérico esforço, ergo as pálpebras, aquilo que invade minha visão faz meu coração encolher-se em meu peito.

Naquela água nojenta, vejo várias cores, que se mesclam num asqueroso caldo. Tem o amarelo esverdeado da bile que queima o esôfago quando traça seu caminho boca afora; tem a mistura rosada da espuma branca da cerveja e o bordô do vinho que tinha ingerido há pouco; o vermelho vivo do sangue, que esquenta minhas entranhas antes de sair em enxurrada. Vejo o mesmo vermelho respingando do antebraço que suporta minha cabeça, sigo uma gota que despenca rumo em direção àquela sopa revoltante, fico vertiginosamente tonto. Meu estômago ferve, enche-se de líquido quente que percorre o sentido inverso do sistema digestório, e cascateia rubro até atingir a água parada da privada. Não agüento mais isto, preciso afastar-me daquela imundice, rápido. Minhas pernas tremem mas não se movem, com uma força que não tenho, apoio a palma da mão direita na borda do vaso, faço o mesmo com a canhota. Meu corpo convulsiona, meus braços rugem em protesto ao esforço que os obrigo a realizar; permito-me ter esperança a cada milímetro que me afasto daqueles resíduos pútridos que pairam a boiar abaixo de mim, até o momento em que meus músculos desistem. Simplesmente desabo, minha fronte acerta violentamente a cerâmica abaixo dela, em seguida o chão, tudo se torna escuro.

Desperto uma breve eternidade depois, o chão se aqueceu sob meu corpo inerte, consigo respirar com menos dificuldade, parece que foi tudo ilusão, até que um odor desagradável chega a mim. Olho para cima, vejo o botão prateado da descarga, para minha surpresa, alcanço-o com uma mão, mantenho-o pressionado por quanto tempo consigo manter o braço suspenso, ouvindo com deleite o redemoinhar da água que se vai e carrega consigo meus dejetos. Fico caído uns bons minutos, respirando com o máximo de calma que consigo, e quando me creio forte o bastante, começo a árdua tarefa de levantar-me. O faço numa lentidão insuportável, usando todo o apoio que alcanço, ponho-me de quatro, de joelhos, me agarro a pia de cócoras, seguro na maçaneta, apoiado na parede, vou alçando-me de pé, pouco a pouco. Sinto o mau cheiro que exalo, um suor pegajoso me cobre, ardo em febre, penso em como seria deliciosa a água morna do chuveiro correndo meu castigado corpo. Cambaleio até o box, minhas roupas empapadas, grossas e fedendo larguei no chão, quase me jogo para debaixo do chuveiro e giro a torneira, que por sua vez libera um jato de água quente, muito quente. A água escaldante queima minha pele, nada faço, toda minha força esta empenhada em manter-me em pé, e mesmo que queime, a sensação ainda é agradável. Aquela quentura que me calcina, parece encontrar par em uma que brota dentro de mim, então aquela familiar dor atroz em meu abdômen, e sinto o sangue subindo estômago acima até desembocar por entre meus lábios abertos. Noto o vermelho mesclando-se com a água que cai, a tontura volta, quase vou-me ao solo outra vez. Sem saber como, fecho a torneira, e em meio a sôfregos tropeços alcanço a porta, viro o trinco de metal frio, e quando a porta se abre, despenco ao atravessar seu vão, atinjo desacordado piso do corredor.

Meio que desperto, num estado de semi inconsciência, em minha cama. Ouço vozes desesperadas, alguém disca velozmente um número num telefone, erra, xinga e tenta novamente, em seguida grita com quem quer que tenha atendido do outro lado da linha. Sinto o frio, indizível refresco, de uma compressa em minha testa, mãos carinhosas e trêmulas me acariciam, lágrimas caem sobre meu rosto e peito nu; sinto meu estômago aquecer e ser preenchido novamente. Em meio a dolorosos espamos viro-me de lado, e permito que o sangue saia, cria-se uma enorme mancha vermelha no lençol branco; enquanto admiro minha obra, outro grito. Tusso o que restou em minha boca, e lentamente torno a me virar. Sofregamente ergo meu braço direito, e toco um rosto que amo, sinto o terno calor que sua mão faz no meu, enquanto me esforço para sorrir, e lançar um mísero sussurro:

-Sinto muito.

Ouço choro, e tudo escurece novamente.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 29/04/2011
Código do texto: T2938616
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