O Náufrago
Hoje, estou sem vontade de escrever; Não escreverei, portanto.
O que lês então, caro amigo, por conseqüência óbvia inexiste. Nada há escrito neste papel que ora manuseias. -Ora, não há papel, estou diante de uma tela de computador! Podes retrucar.
-Pois agora é que percebo com claridade meridiana que, não havendo nem papel nem escrito algum, nada pode me convencer que há alguma coisa aqui além de minhas lucubrações mentais...
Escrevi esse pequeno trecho enquanto navegava em alto mar. A noitinha já caía sobre o barco, o lusco-fusco e a luz da lua sobre as ondulações das águas do mar me enchiam de sentimentos de langor e melancolia. O batel, à deriva, sem bússola, quadrante ou sextante vagueava sem maiores preocupações sobre o infindável oceano, como se nada esquadrinhasse, resignado em estar perdido. Eu mesmo resignara-me desta situação e, encarava-a com relativa naturalidade. O fato de estar irremediavelmente sumido num vasto oceano não mais me assustava.
O cansaço, porém, me obrigava a encerrar a única atividade que ainda realizava com intuito único de fazer o tempo passar, que era escrever, às vezes até a contra gosto municiava-me com um pequeno lápis e um velho bloco de notas, e com eles escrevia horas a fio. Tal atividade até me agradava, mas, o desânimo me perseguia com freqüência. Muitas vezes a pena e o papel caíam-me das mãos no mesmo instante em que as pálpebras fechavam-se. Certa vez senti meu corpo tão alquebrado que nada pude fazer para deter este estado de desânimo. Caí em sono profundo sem ter a menor noção de quanto tempo nessa condição permaneceria...
Súbito, acordo em medonho desespero, onde estão as cores e fragrâncias? A luz onde está? Os sons e todas as sensações onde estão? Fugiram todos? Sim, sorrateiros, desertaram esguios o barco da vida em que navegava. Com horrenda indignidade abandonaram-me em pleno sono e, ao despertar, no pélago, vejo-me em pavorosa situação: Todos me abandonaram. Certamente, durante a noite tramaram a traição e, antes do amanhecer retiraram-se silenciosos desta nau de ilusões. E agora? Como se não bastasse tão aflitiva situação, até a Senhora Ilusão, última companheira de viagem, apavorada, parece também querer abandonar-me! A Ilusão? Haverá algo tão terrível que a própria Ilusão receie?
Foi-se a velha confreira, último remanescente dos meus companheiros de jornada. Abandonou-me a ingrata. Na calada da noite, esgueirando-se furtiva, fugiu... Mas, com sua partida, que surpresa! Que visão fabulosa! De súbito todas as cores surgiram em tons e matizes jamais vistos, a visão, outrora tão limitada, voava além fronteiras, e os sons, que belos sons, que belas melodias. E meus amigos, todos meus bons amigos... Juntos entoavam a Música admirável! Que côro angelical a invadir meus ouvidos e preencher todo meu ser.
Teria sido cego? Sim, cego. Vivi toda uma existência iludido pela fraude daquela corrupta e falsa amiga, mas, agora que a depravada companheira Ilusão se foi, percebo a verdadeira realidade, aquela que nunca vira, posto que sempre estivesse muito longe de meus sentidos, e com a partida da Ilusão, aquela que com suas garras dilacerantes despojara meu corpo que há séculos jazia putrefeito, é que pude perceber, com humildade diante da tão grandiosa sabedoria Divina, a realidade, espelho da Verdade, pois só com os olhos do espírito podemos vê-La!