Despretensão
Hoje me aconteceu uma coisa bem boa. Uma saudadezinha, um afago no meu coração tão cansado e distante da infância inocente e gostosa que vivi num paraíso onde eu podia ser o que eu quisesse. Bons tempos, outros tempos. Estava inerte no sofá, assistindo estupidamente um programa tosco na televisão, daqueles que a gente chega em casa e liga o aparelho só pra ouvir a voz de alguém, despropositadamente, quando alguém lá dentro da tela disse que um dito cujo seu interlocutor teve um lapso de memória e não se lembrava do nome da cidade em que nasceu. E nessa leva, esse alguém ficou instigando o dito cujo a lembrar um nome simples, que este jamais poderia se permitir a esquecer, já que era o nome de sua cidade natal.
Caso estranho. Eu jamais me esqueceria do nome São João Del Rei, minha cidade mais que maravilhosa. E, por mais que a qualidade e substancialidade daquela droga de programa fossem nulas, eu me atentei ao fato e fiquei a ouvir. Rio de? ... março, abril, ..dezembro, o “narrador” terminou a enumerar. Como pode! – eu pensei. Rio de Janeiro é tão fácil! Daí me ocorreu a deliciosa lembrança.
Minha mãe, D. Josefina, sentada, bonachona como sempre, já caduca, no rabo do fogão de lenha. Tão bem aventurada que teve a graça de dar à luz quatorze filhos vivos (sete mulheres e sete varões) e dar à vida uma adotiva que sou eu, no alto de seus cinquenta e tantos netos ( Ô família de parideiras!), ficava a chamar suas filhas mulheres quando só queria mesmo chamar a Maria Inêz, que atende por Nezita - A única com o nome mais diferenciado. E assim, ao longo de seus oitenta anos, em seu permitido e muito bem usufruído lapso de memória, começava a recitar:
_Waldete, Odete, Sarlete, Claudete, Arlete, Enizete... Nezita! Ou nem chegava a lembrar.
Presenciei esse fato inúmeras vezes, e hoje me lembrei por causa de um motivo tão fútil. E nisso, me lembrei da delícia que era, eu pequena, às voltas de suas saias, ouvindo toda essa cantoria. Era divino, mágico, irreverente, coisa mais boa! Eu nunca perdia isso,me divertia copiosamente.
De tudo isso me veio uma reflexão. As coisas mais simples, não sei se são as melhores. Talvez se eu estivesse assistindo às provocações do Abujamra, eu teria me instruído melhor. Mas a lição disso foi que nem sempre criticar ou ajuizar sejam as melhores opções. Por tudo, acho que a gente pode fazer poesia de tudo mesmo, até do fato mais despretensioso. E aí eu percebi, nas entrelinhas de minha reflexão, que o fogão de lenha também dá samba, dá rock, dá poesia. Nós carregamos nossa essência, mesmo que queiramos ousar intensamente. Uma voz sem rosto e significado no meu julgamento me levou a um fato que eu sem pestanejar me agarraria loucamente. Me reportou a momentos preciosos, mais que qualquer reflexão filosófica de grande substância.
Percebi que é preciso soltar as amarras da não ignorância vez em quando. Do mesmo modo me lembrei do velhinho com sua carrocinha de pipocas na Universidade, todo mundo passa por ele como se ele fosse parte da carrocinha. Não é à toa que eu sempre gostei de ouvir suas histórias enquanto devoro a tal guloseima. Eu gosto mesmo de histórias e estórias, de gente cult e de singelezas. Tudo acrescenta, tudo tem seu lugar, até mesmo aquele velho Ficus que não cansa em querer me contar histórias. Embora não saia do lugar, raízes profundas, me conta casos de Methuselah, Prometheus e a Patriarca da Floresta.
Tenho também saudades da aurora da minha vida, das palmeiras. Mas, tenho muito mais saudades do que eu não pude perceber nas coisas simples por tanto buscar o inatingível.