TIO DÉLCIO, 

  QUE BRILHE NOS CÉUS

  AO SOM DE UM BOLERO !



    
Ali ninguém pensava antes de falar. Ao contrário, falava-se pelo prazer de ouvir a própria voz.  Que ninguém pensasse em dizer não, pois todos queriam mesmo era dizer sim, cansados das negações e limites com que a vida diária marcava suas carnes. Permissividade, libertinagem, olhos escancarados, bocas mastigantes e frêmitos nas cadeiras ao som do pistom, muito mambo e boleros, naquela velha casa da Rua Quinze, aonde as beatas ao passar faziam o pelo sinal e onde, ao sol do meio dia, portas cerradas, cenho carregado de paredes cinzentas, olhos de longas pálpebras das janelas encarreiradas, qual  vetusta senhora carrancuda, aquela fachada trazia somente um indício de vida na placa balançante e enferrujada de latão. Nela se  lia com dificuldade, CHÃO DE ESTRELAS, e um B solitário de uma palavra apagada cujas letras finais haviam sumido denunciando um tempo recuado de boêmia em que a vida se poetizava como um palco iluminado, onde a amada pisava em astros distraída e não sabia, (como cada vez menos sabe), o que é a ventura desta vida.
       Havia agora, naquele assoalho de tábuas largas algumas frestas, onde, vez por outra, as moças prendiam os saltos altíssimos dos sapatos que muitas vezes,   perdidos no meio da animação geral, ficavam lá sem ter a menor chance de serem encontrados por algum príncipe. E que elas nem pensavam em ver resgatados já na animação da noitada, quando muitas vezes os pés nus gostavam de marcar a cadência de ritmos alucinantes que a velha Cuba exportara para a América inteira e que fizeram o furor dos anos cinquenta, adentrando aos sessenta ainda com fôlego.
        Naquela urbe com todos o vícios e pretensas virtudes de qualquer ajuntamento humano,  especialmente uma cidade que já vivera dias de riqueza, havia  desde há muito,  condições para um cosmopolitismo e,  tal  casa de diversão tinha sido  uma novidade copiada das modernidades da capital do Estado e recebido a melhor sociedade local, lá nos primórdios dos anos cinquenta. Por pouco tempo, é verdade,  já que não demorou para que os zelosos maridos não mais quisessem participar com suas mulheres de um local tão público. E a frequência, em poucos anos,  foi tomando a feição de um local onde as aparências não contavam.
       Nesse tempo, por comodismo ou desleixo das autoridades, o território destinado a abrigar o chamado mal necessário municipal já há muito avançara além dos confins permitidos e trouxera constrangimentos a moradores, entre eles,  uma distina senhora, costureira e mãe de duas filhas em cuja porta certa noite bateram uns rapazes afoitos perguntando pelas meninas. A pobre sem se dar conta , dissera que ia chamar, julgando serem amigos, ao que eles responderam, já adentrando à sala, que não carecia, pois eles mesmos iriam encontrá-las no quarto. Outro morador, cuja casinha só era separada da inconveniente vizinhança por uma cerca velha,  resolveu, em desespero de causa, colocar uma placa à porta, e na pressa, engoliu uma letra ficando então o recado: AQUI, CASA DE FAMLIA.     Pouco depois, tendo em vista a rapidez com que se uniram esforços para construir bem longe novas casas para abrigar o incômodo, e tendo isso  ocorrido  pouco depois da inauguração na nova capital em Goiás,  a nova zona do meretrício passou a ser justificada e orgulhosamente denominada de BRASÍLIA.
      Esses ares da nova década, com aparelhos de TV aparecendo nos lares e um novo mundo sendo inaugurado onde, como se dizia na época, "é tudo funcional" ,os vestidos sem laçarotes, as casas de formas retas, um paraíso cintilante em tons prateados, não atingiu a nossa velha casa da rua Quinze que resistiu bravamente com seus dançarinos, gigolôs, bêbados sobreviventes, agarrados como náufragos a suas noites.  Eram invencíveis remanescentes de tempos de um  brilho hollywoodiano mesclado a rum, onde o cinema fazia a mágica com que simples homens viravam personagens, tal qual  aquele cafetão que usava capa preta, chapéu e bengala, e era seguido por estranho cortejo de lacaios que ora alcançavam, ora seguravam tais apetrechos e provavelmente sentiam-se algo como vassalos daquela majestade marginal. 
       Este homem calejado nas artes do submundo, virou  um menino assustado quando, certa noite,  bateu à porta,  pela madrugada,   a procura de sua mãe, tendo ouvido dizer que ela morrera.  E , menino brincalhão, encantava a pequena sobrinha ensinando-a a dançar o que a mãe dela chamava de danças de cabaré. 
       Pessoas como ele que não encontram significados na vidinha restrita do seu pequeno vilarejo, terminam buscando por caminhos obscuros a única oportunidade de se livrar  do espaço exíguo onde deviam ser encerrados até a morte.  E somente encontram à margem,  um abismo fascinante ao qual se entregar, pois dentro de si são o  desatino  que não conhece regras.  E assim, relegados à própria sorte, acabam por queimar-se na própria chama ... bebendo e dançando a vida... Mas engana-se quem os chama de perdidos...    

           
texto revisto e republicado 
publicado em outubro de 2008

Nota: esta crônica é baseada em pessoas reais.



tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 27/04/2011
Reeditado em 27/04/2011
Código do texto: T2934973
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