A "CRISTALEIRA"
Desde que me entendi por gente, em minha casa havia umas moças “criadas” por minha mãe. Eram delas as tarefas de cozinhar, lavar, passar e limpar “onde o papa via”. As minhas obrigações, desde os 10 anos, eram realizadas aos sábados: varrer, encerar o chão, passar escovão (um artefato que os educadores físicos deveriam recomendar para os meninos de hoje, que querem ficar “ombrudos” e “braçudos” de qualquer jeito) e lavar as reminiscências de uma época, quando “as vacas eram mais gordinhas”: as louças e os cristais.
Quase sempre eu tomava uns tapas de mamãe, quando ela me pegava absorta, com o braço apoiado sobre a vassoura, lendo alguma revista de fotonovelas. Eles, porém, doíam menos do que quando, após deixar o assoalho brilhando, eu via meu irmão mais velho, Nilo, o pisando com os coturnos sujos, chegando do 38º Batalhão de Infantaria.
Limpar a cristaleira, entretanto, me dava profunda alegria. Cuidadosamente eu lavava as jarras e os jogos incompletos de taças, conseqüências de alguma desalmada que delas cuidou antes de mim, sem perceber o quanto são frágeis e lindos aqueles vidrinhos de brilho incrível. Sentia enorme orgulho, quando no finalzinho da tarde, eu via tudo reluzente, e nunca me frustrei pensando que no sábado seguinte eu teria de repetir minhas tarefas.
Há alguns anos, eu ganhei de meu marido uma linda cristaleira e a dispus na sala, bem próxima da porta do meu quarto para poder vê-la todos os dias. A primeira coisa que nela coloquei foi uma coqueteleira e seus 04 remanescentes copinhos, pertencentes à minha mãe, e por ela a mim presenteados pouco antes de falecer.
Em seguida eu arrumei os cristais que me foram presenteados por pessoas muito queridas: uma licoreira dada pela Dra. Célia Gaburro por ocasião do meu casamento; uma linda bombonière, oferecida por meu eterno professor de Português e Literatura, Octaviano Carvalho Calmon, em meu 50º aniversário; uma jarra, uma fruteira e uma bombonière, presentes da minha amiga Jaudeti Luiza Tozato, a quem chamo, carinhosamente, de “Formosinha”; o jogo de copos para whisky dados por Aninha Paraíso num aniversário de meu casamento; e um jogo de taças para vinho branco, com pés zebrados, entregues por Cida, uma aluna da turma de Letras, no dia da festa dos meus 50 anos.Também ali, fiz questão de expor a linda caixa dourada, contendo um jogo de xícaras de porcelana, presente da amiga Vera Degan.
Para acabar de compor minha “lindinha”, na falta de maiores recursos, eu fui comprando taças de vidro mesmo: para champagne, água, vinho tinto, vinho branco, cerveja, vodka... Todos brilham quando estão limpinhos, e aos olhos pouco atentos eles se confundem, menos aos meus.
Hoje, quando eu não “crio” nenhuma moça (e mesmo pagando todos os direitos trabalhistas elas estão escassas) e tenho de contratar diaristas ou faxineiras, continua sendo minha a tarefa que aprendi aos 10 anos.
A cada vez que me dedico a ela, eu penso sempre a mesma coisa: minha cristaleira representa as pessoas que a vida me apresentou. Os amigos são os cristais, os “de araque” são os vidros. Por mais que ambos brilhem quando limpos, meus olhos treinados os diferenciam muito bem.
Aprendi que na vida, em favor da civilização, é melhor tratar “cristais” e “vidros” sem distinção, fingindo não saber quem é quem. Sei que os primeiros permanecerão conosco enquanto vivermos, porque mutuamente recolhemos e recompomos nossos estilhaços, quando somos jogados ao chão. Os outros, por índole, se traem, mostram suas verdadeiras ligas, seus pontos de fusão. Nesse dia, eles se esfacelam e como são “baratinhos”, devem seguir seus destinos: recolhimento dos mínimos caquinhos (inclusive com pano de chão), lixeira e substituição.