MANCA ÉGUA

Série: Crônicas da Natureza

MANCA ÉGUA

*ghiaroni rios

A turma de pescaria era formada há tempos. Seu Valmir, mais velho, empregado do almoxarifado da Prefeitura, era respeitado, meio que líder. Geraldão, pedreiro dos bãos. Antonio Cabecinha, sapateiro, macumbeiro afamado, orientador de muitas viúvas. Zé Preto, também pedreiro e bom na cozinha. Estes eram os mais freqüentes, além dos dois meninos adotados na turma da pescaria: Geraldo Siqueira e Nairobi.

A pesca era em fim de semana. O ritual era parecido. Todos trabalhavam sábado até as onze horas. Fazia-se uma vaquinha e o dinheiro entregue a Seu Valmir. Ele ia à feira comprar o rancho, incluindo a galinha caipira para o almoço do domingo.

Mas naquele sábado estava tudo dando errado. Todo mundo travado, ou por falta de dinheiro ou trabalho. E Nairobi e Geraldo não desistiam e resolveram chamar as respectivas irmãs para pescar.

Com a turma de Seu Valmir algumas coisas se repetiam. Um cesto de bambu com os “de cumê” e roupas. As diversas varas de anzol (se já existiam molinetes e carretilhas, lá no Vale do Mucuri ninguém conhecia) passavam dentro de uma esteira de taboa, para dormir, e tudo isso era ajeitado nas bicicletas.

Ducarmo e Dos Anjos começaram estranhar o tanto que os dois enfeitavam a Lagoa de Jorge Turco aonde queriam pescar. Pintavam como um paraíso perdido ali pertinho, com saída da rodovia Rio Bahia na cabeceira da pista de pouso e de lá não dava nem dois quilômetros pelo mato até a lagoa.

Prometiam também muito peixe, jacarés, um gramado e árvores frondosas à beira d’água, e um céu muito, muito estrelado. Os quatro e a bagagem iriam em duas bicicletas. Moleza! Para prevenir de jacarés abusados, Nairobi pegou emprestado com o Alemão da Lusitânia, um revolver 38 carga dupla.

No grupo costumeiro de pescarias todos tinham práticas e habilidades. Escolhido o rio e o pesqueiro armava-se acampamento com uma velha e rasgada grande lona de caminhão e um fogão improvisado em qualquer canto. Quando dava lá pras nove da noite todos retornavam ao acampamento com os cambões cheios de piaus, traíras e os saborosos bagres bons para moqueca.

Hora de fazer a janta, Seu Valmir ia à fieira de cada um, escolhia os melhores peixes e não aceitava ajuda para limpá-los. Um velho par de óculos, acocorava na beira do rio com uma lamparina a querosene (lanterna era luxo) e caprichava na limpeza dos peixes.

O rango era um arroz soltinho, do caldo do peixe no caldeirão era feito um pirão com farinha branca e muito peixe fresquinho. Então cada um procurava seu canto pra espalhar a esteira no acampamento todo aberto, que não raro era visitado por cobras. Quando alguém gritava que era cobra mansa ninguém se levantava para tocá-las. Nairobi ainda trepava em uma ingazeira pra escutar música na Rádio Mundial, no radinho de pilhas.

Da rodovia asfaltada até a lagoa, as meninas reclamaram muito porque era longe. As bicicletas deixadas em uma casa de caseiros da Fazenda e o resto até a lagoa a pé no meio de mato fechado e espinhento.

O prometido gramado virou um alto colonião, umas esteira de metro e pouco para dormir quatro. O pequenino fogareiro a álcool não funcionou. Ao tirar lascas em árvore caída pra tentar coar um café cobra brava correu com os dois pescadores. E peixe que era bom nada!

Depois de muito reclamar as meninas chamaram para um acordo. Emprestava-mos uma bicicleta para as duas irem embora e o revolver ou o facão, pois tinham medo dos caminhões na rodovia àquela hora da madrugada.

Acordo fechado foram-se.

Os dois pescadores sonhando em pegar traíras com as iscas de lambaris, já fedendo naquela altura, quando o dia amanhecesse, tentavam dormir.

Aí começou a gritaria bem longe: Acode gente, Ducarmo quebrou a perna, repetindo incessantemente.

E agora, verdade ou mentira? Vamos lá Geraldo e se quebrou a perna mesmo!

As duas estavam no terreiro da casa dos caseiros que se recusaram a acordar e dar ajuda. Convenceram os dois a levá-las até a cidade e voltar, pois Duca quebrou a perna quando bateu farol de caminhão na rodovia e caíram no mato pra se esconder.

Os dois primos putos da vida (as mulheres estavam atrapalhando a pescaria) foram levá-las e de vez em quando escutavam baixinho: Manca sua égua senão descobrem que cê não quebrou nada!

Uma longa pedalada ida e volta até em casa. O corpo cansado aceitou bem a esteira para o resto de sono. O dia clareando Nairobi foi recompensado pegando seis boas traíras.

O autor é ambientalista/escritor

ghiaroni rios
Enviado por ghiaroni rios em 27/04/2011
Reeditado em 27/04/2011
Código do texto: T2934422
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