Estranho encontro
Como tantas vezes antes, encontrava-me sentado num murinho de pedra, mal passado algum tempo desde a alvorada. Como bom bêbado, versado nas artes etílicas, tenho sempre um modo de camuflar o quanto bebi; bem como de arranjar um meio de não dividir o que ainda tenho. Neste caso, escondi duas garrafas num vão atrás do muro, e aquela que conservava em mãos, negava dividir com a justa alegação de ser minha última, já morna e pela metade. Aí se vê como é compreensivo um bêbado para com outro, os que saíam a cambalear dum bar próximo, vítimas de uma noite regada a toda sorte de destilação, deixavam-me a sós com minha saideira, sem maiores reclamações. Tudo se encaixava naquela imutável rotina a que me acostumei; bebia logo cedo, antes de perder o torpor da noite prévia, remoia tudo aquilo que me faz mal, passando a mesma coisa diversas vezes por um cérebro encharcado de álcool barato, e comungo com minha companheira, a tristeza. Não fosse um acontecimento, que a princípio parecera corriqueiro, vir a acontecer, tudo se manteria como sempre. Um incógnito companheiro, sentado um pouco longe de onde eu estava, se aproxima e senta-se ao meu lado.
É um homem que já viu mais de quarenta aniversários, seus obviamente, rugas nos cantos dos olhos, a pele rachada como couro velho, roupas surradas e nada atraentes, velhos trapos se preferirem, e um olhar que denotava cansaço. Senta resmungando de alguma dor e diz-me:
- Sabe, eu prefiro ficar aqui sossegado, com minha cervejinha, do que ali no boteco, aqui consigo ficar em paz.
“Eu também”, pensei um tanto irritado, mas apenas acenei brevemente e sorri-lhe. Se notou algum desgosto em meu gesto, nada disse, e em silêncio permaneceu por uns instantes. Ficamos ali, sentados, bebericando nossas cervejas quentes, olhando a rua e recebendo estranhos olhares, como se fôssemos amigos há muito tempo. Então ele torna a falar:
- Minha mãe sempre reclama quando bebo, toda santa vez é a mesma coisa.
Um pouco espantado, sorri outra vez, e disse-lhe que esta sina não lhe era exclusiva, que tinha pensado naquilo há pouco. Sinto uma pontada no estômago, uma dor aguda que ignoro, ele ainda olhando para frente, dá um sorrisinho meio malandro, e diz:
- É, mas eu não dou muita bola não. Gosto de tomar minha cervejinha todo dia, azar de quem acha ruim, pra mim faz bem.
Desta vez o pensamento “Somos dois companheiro” passou pela minha cabeça, tomei outro gole e disse “Amém”. Ele continua com aquela expressão divertida no rosto, como alguém que sabe onde estão escondidos os presentes no Natal, e mais uma vez faz uso da palavra:
-Uma vez fiquei um tempo sem beber, o médico tinha mandado, mas sabe como é né?
Agora fico um tanto quanto assustado, quando penso na chance de tantas coincidências coincidirem, ele por sua vez, prossegue com o raciocínio:
- Foi depois de operar a barriga, ah esqueci de contar, tenho câncer no estômago, já faz um tempo. Depois da cirurgia, o doutor disse que não era pra eu beber de jeito nenhum, muito menos do jeito que eu fazia. Fiquei uns seis, sete meses, e comecei devagar sabe, umazinha por dia. Aí fui voltando ao normal, de pouco em pouco, tomando cuidado.
Em seguida ergue sua lata oferecendo um brinde. Sinto-me empalidecer, a pontada em meu abdômen retorna, inoportuna e mais acentuada, levo sem perceber uma mão à barriga. O homem toma outro gole, estala os lábios, e fitando o nada fala outra vez:
- Às vezes parece que ele vai explodir, o estômago sabe? Mas é só dor, passa, e a minha cervejinha, ah, essa sempre me faz sentir melhor. E outra, sempre fiz o que quis, e na minha opinião? Médico mal sabe o que fala, da minha vida cuido eu, não devia nem ter deixado ele me abrir como um peixe.
Não sei dizer ao certo como me encontro no momento, várias coisas passam pela minha cabeça, acho que minhas mãos tremem um pouco, sinto-me tonto, atacado pela surrealidade disto tudo. A conversa torna-se cada vez mais um peso, é desagradável, desconfortante, assusta. Como se lesse minha mente, aquele que poderia ser eu daqui um tempo, lança-me um sorriso desdentado, dá-me um tapinha no ombro, se levanta e principia a afastar-se. Move-se rapidamente, com uma fluidez incoerente; grito, perguntando-lhe seu nome, ele se vira pra mim, ainda sorrindo, o que me parece um sorriso sem falhas, e diz algo. A cacofonia do trânsito engole o som de suas palavras, um grande ônibus cor de abacate passa trovejando à minha frente, quando ele se vai, não enxergo mais o homem do olhar triste e da cerveja quente.
Enquanto penso sobre aquilo tudo, retiro outra garrafa de meu esconderijo, atiro a velha fora, abro a nova, e continuo pensando.