A BARATA E O PÓ

A Barata e o pó.

João Otavio – o Jota – chegou estropiado ao barraco. Passara o dia lambuzado de graxa e óleo, consertando o motor de uma carreta cujo motorista, um gaúcho, reclamava de Deus e do Diabo, amargurado com a crueza da vida.

Não deu nem tempo de tomar banho. Como não tinha mesmo nada a procurar no velho fogão, foi direto à caixa de sapatos, escondida atrás do tanque. Abriu, tirou o fundo falso e pegou o último papelote. Seus olhos pareciam querer deixar as órbitas do rosto e pular sobre aquele pó, tal era seu desespero.

Conteve o impulso dos olhos.

Sentou-se no tanque e com o canudinho de pirulito que havia juntado na vala, aspirou sofregamente, tombando de costas e escorando-se na parede mal chapiscada.

Antes de ser tomado pela cocaína, viu, na parede, acima de sua cabeça, uma enorme barata. Imóvel, ela parecia olhar para ele, como alguém que admira e venera um ser reconhecidamente superior.

De um só impulso, Jota colocou-se de pé. Depois, abaixou-se devagar e, sem tirar os olhos dela, pegou o chinelo, recuou o braço e, pleft!!! Esmagou-a, sem piedade.

Ela caiu, rolou uma ou duas vezes de um lado para o outro, depois ficou inerte...

– Filha da puta! – disse ele, já sentindo que o pó chegava ao cérebro e o despertava, furioso.

Poucos segundos depois, sentiu que o fogão deslizava, parecendo sair de onde sempre esteve, escorregando para a porta do banheiro. Instintivamente, levou a mão para não deixá-lo virar. Mas o movimento desgovernado com a mão derrubou a velha cadeira plástica.

– Maldito pó – pensou ele – essa porra ainda vai me matar... indamais com essa ‘broca’, completou, falando alto.

Dois minutos depois, um nevoeiro invadiu-lhe os olhos. Saiu apalpando as paredes... Chegou à cama: um estrado de madeira, forrado com jornais, papelão e molambos... Deixou cair sobre ela o trapo de seu corpo e nem sentiu que as arquitraves de madeira sob o precário colchão marcavam suas costas.

Acordou umas duas horas depois. Com alguma dificuldade, sentou-se. Depois, foi para a área de serviço, onde ficava o tanque em que lavava seus trapos de roupas. De repente, viu a barata remexer as antenas, girar o próprio corpo sobre as patinhas e bater as asas...

Esfregou os olhos. Quando os abriu novamente, viu a barata, ali, bem na sua frente, do tamanho de um rato.

– Qui diabéisso!?! – exclamou, sem articular direito.

Olhou de novo; ela deu uma sacudida no corpo e logo ficou do tamanho de um carrinho de mão. Era monstruosa, bramia e agitava as antenas, como se fossem chicotes.

– Diabos! É a fome ou é o pó? – perguntou-se.

E antes que chegasse a uma conclusão a respeito, a barata aumentou ainda um pouco mais e moveu-se na sua direção, em atitude de ataque.

Aterrorizado, Jota correu na direção da porta que dava pra rua. Suas pernas pareciam leves e seu corpo flutuava. Não ouvia nada além do barulho das antenas, das pernas e das asas da barata, que roçavam umas nas outras, no encalço dele...

Nem ouviu a sirene da viatura policial, que entrava a toda velocidade no morro.

Do jeito que ia correndo, nem parou para olhar se a barata ainda o seguia ou não, nem para ver se vinha algum veículo no beco.

Deu de cara com a viatura da RONDA, mas não ouviu a ordem para que parasse e botasse as mãos na cabeça... Não parou de correr, pois temia que a barata o seguisse de perto.

Enquanto isso, Gumercindo abriu a porta da viatura e, ainda em movimento, apontou o fuzil para as costas de Jota. O tiro ecoou no morro e Jota foi jogado de encontro à parede de um barraco. Mas ele nem chegou a ouvir o disparo... Sentiu apenas uma pontada nas costas e um leve ardor traspassando o peito. Caiu estatelado na lama, empapado com uma pasta vermelha que lhe escorria pelos cantos da boca; ainda conseguiu virar a cabeça, querendo ter certeza de que não fora a barata quem o atingira com o chicote mortal das antenas.

Gumercindo, porém, descera da viatura e vinha em sua direção. Mas Jota não o enxergava direito: a vista sumia, escurecendo e voltando em seguida, como se estivesse numa sala escura e alguém acendesse e apagasse a luz.

Com algum esforço, sussurrou por entre os dentes, quase sem abrir a boca:

– Cuidadu cu a barat...

– Vai te fuder seu fodido! – disse o policial, reconhecendo-o como aquele infeliz que já fora um dos chefes do morro, preso inúmeras vezes, mas que agora, dependente, não tinha mais condições de "colaborar" com nada... Engatilhou a arma, apontando-a para a cabeça de Jota.

Depois concluiu:

– Tá gostando desse barato, tá? Pois toma o restinho que deixei pra você...

E disparou novamente, reduzindo a cabeça de Jota a uma forma disforme de sangue, cabelos e massa cinzenta...

A viatura deu marcha a ré. Gumercindo entrou e ela saiu em disparada morro abaixo.

Algumas janelas foram abertas e fechadas logo em seguida, como se a viatura que passava espalhasse uma doença contagiosa...

Depois, muitos saíram de seus barracos e viram aquele corpo inerte no chão. Mas ninguém se preocupou em espantar as baratas que saiam dos sacos de lixo e do esgoto e vinham até ele, atraídas pelo cheiro forte de sangue.

Antonio José (29/10/99)