Raiva e nada mais

Não sei quanto bebi, sei que o Sol brilhava quando comecei, e que minha visão está turva, tal qual meu equilíbrio. Sei também que carrego comigo uma raiva inédita em minha vida, tão grande que falho em conceber como ela se aloja em mim, sem que eu arrebente. Tento pensar melhor sobre isto, imerso neste turbilhão de fúria e mágoa, pensar torna-se algo que beira o impossível, mas chego a uma conclusão. Isto que sinto, realmente não cabe em mim, escapa pelos poros, flui de dentro para fora e circula ao meu redor. Percebo isto pela mulher que tira a criança do meu caminho, puxando-a pelo braço com brusquidão; pelo homem que dá um passo para o lado e cerra, inconscientemente, os punhos com o intuito de defender-se; pelo breve aceno que toma o lugar de um sorriso, que me lançaria um antigo companheiro que me vê a vagar. Isto tudo, dá-me certo prazer, regojizo em saber que minha raiva, ao contrário de tantos outros sentimentos, é reconhecida e respeitada. Permito que ela cresça a seu bel prazer, e se para isto se mostre necessário que ela consuma todo o resto do que sinto, ou que possa vir a sentir, que assim seja.

Caminho trocando passos, embriagado de raiva e tantas garrafas, meu raciocínio anuviado por uma atroz falta de sono, meu coração esmagado, sem buscar lugar algum. Um cão se aproxima, fito-o com o canto dum olhar furioso, ele gane e saltita para longe. As estrelas parecem foscos pontos de luz, turvas por minha visão prejudicada parecem quase apagadas, vejo um vulto que se move a minha frente.

Não sei se esbarro nele, ou se é o contrário, ouço-o dizer qualquer coisa, poderia tanto ser um pedido de desculpas quanto o mais vil xingamento, indifere. Quando percebo, já havia me lançado irracionalmente contra ele, e poucos segundos passados, ele se encontra caído de costas, e eu sobre ele. Um de meus joelhos comprime seu peito que arfa, o outro no asfalto, logo abaixo de sua axila. Sem pensar solto soco após soco, enquanto bufo e rosno, direto em seu rosto. Sob a enxurrada de malignos golpes, ele súplica para que o solte, implora, tenta por seus braços entre meus punhos e ele. O homem caído continua com seus pedidos, enquanto metodicamente afasto suas mãos, uma seguro com uma das minhas, e a outra inutilizo com o peso de um joelho sobre ela, em seguida, torno a agredi-lo. Ele vira o rosto tentando desviar-se, vez ou outra acabo por errar e atinjo o asfalto áspero e duro, minha mão se fere, sangra, não paro; noto que a maior parte do sangue que nela escorre não é meu. Cada golpe que alcança seu rosto atinge uma face diferente, ou até alguma imagem gravada em minha memória. Vejo cada um que me vez mal, um amigo a rir, uma moça com troça nos olhos, tantos que me fizeram de solo, sorveram em gozo meu pesar. Como vem cada rosto, vem cada situação, cada lágrima ignorada, cada sentimento despedaçado, cada pedido perdido ao vento, cada momento de dor, cada nota desta ode a dor que me tornei.

Sinto outro par de mãos, desconhecidas, tentando impedir-me de continuar tão desonesta sova, num movimento selvagem livro-me delas, urro algo, e ouço seus passos se afastando velozmente; vai-se bravamente outro herói. Volto-me ao receptáculo de minha ira, que ainda tenta interpor um braço em meu caminho, enquanto novamente me livro do membro inconveniente, sinto que suas unhas me arranham em desespero, do cotovelo dum braço, às costas da mão. Ergo o punho, preparando novo nefasto assalto, vejo abaixo de olhos roxos e cerrados, sob um nariz quebrado que verte rubra enxurrada, um par de lábios partidos e tão inchados que mal se afastam ao tentar formar duas míseras palavras. Não ouço o que queria ser-me dito, mas noto claramente as palavras “por favor” sendo formadas na boca destruída. Meu punho abaixa vertiginosamente, ouço o impacto quando acerto violentamente irreconhecíveis feições, bem como o estalo oco de seu crânio contra o pavimento. Ele engasga, seu rosto cai para um lado, engasga novamente e cospe involuntariamente uma massa vermelha, perde então a consciência. Para de espernear, seus braços param de lutar, suas súplicas cessam, o olho que estava aberto, fecha-se. Grito para ele que não, ele não tem o direito de livrar-se da dor enquanto nunca foi me dada esta oportunidade, grito que não foi o bastante. Ordeno que se levante, uivo coisas ininteligíveis até que todo ar deixe meus pulmões.

Frustrado, ainda imerso em ódio, levanto trôpego, dou dois passos mal dados para trás. Sob a parca luz dum poste, o sangue em minhas mão torna-se rosado, irreal. Vejo janelas se acenderem, vozes assustadas, indignadas , distantes se manifestam. Não vejo ninguém saindo porta afora a fim de ajudar a criatura que aparentemente jaz inerte, desamparada na rua fria. Cuspo no chão em desprezo, a quem ele é dirigido não posso dizer. Dou uma olhadela no homem estatelado, de braços abertos e pernas estiradas, vejo a calça rasgada em vários lugares, em virtude da fricção com o impiedoso pavimento. Acho que seu peito sobe e desce, minimamente em ilongos intervalos, talvez não, não sei. Dou as costas à tudo, não sei o que fazer, então torno a andar, rumo a lugar nenhum.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 26/04/2011
Código do texto: T2932981
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