SEMPRE FICA UM POUCO DE PERFUME
Em 2008, a chefe do presídio de Linhares, uma jovem muito elegante, solicitou uma parceria com a Unilinhares, no sentido de que, no Dia das Mulheres, os profissionais da Faculdade desenvolvessem atividades psicopedagógicas com as cerca de 90 apenadas que ali “residiam”.
Escolhidas e lideradas por Ana Paraíso Dalvi, nossa então Diretora Acadêmica, eu e as professoras Jonisete Marta Bissoli e Jussara Carvalho Oliveira começamos a planejar o evento, imaginando o que poderia sensibilizar pessoas que viviam privadas da liberdade, muitas vezes, porque os seus companheiros haviam “caído”, acusados de tráfico de drogas.
Sabíamos que, preliminarmente, elas participariam de um culto, que nós teríamos duas horas para desenvolvermos o que houvéssemos planejado, e que, a seguir, elas receberiam um lanche especial, doado por entidades civis de Linhares.
Decidimos que trabalharíamos com dinâmicas e que lhes daríamos um presente: um kit contendo sabonete, escova e creme dental, além de absorventes higiênicos. Para tal, divulgamos nossa ideia com os alunos e conseguimos muitas doações.
As dinâmicas escolhidas tinham como objetivo mexer com os sentimentos, fazer uma purificação, um “bota-fora” de sofrimentos. Então, vimos que precisaríamos de papéis, canetas, bolas de soprar de quatro cores diferentes, aparelho de som e microfone, um CD com as músicas “Bolero de Ravel” e “Carmina Burana” (O Fortuna), uma mesa, uma panela de barro, carvão, álcool gel e fósforo.
No dia agendado, por volta de 13 horas, sob um sol de rachar moleiras, lá fomos nós, carregadas de apetrechos e dos presentes que distribuiríamos. Após passar pela revista habitual, entramos num local cujas fisionomias mudas “falavam”, pois transmitiam tristeza e despertavam um desejo profundo de sairmos dali correndo.
Do lado esquerdo, em dois pavilhões, se não me falha a memória, ficavam os homens. Assanhados, eles gritavam galanteios e eu acho que fiquei até envaidecida quando alguém por trás das grades gritou: Gostosa!! Tá certo que eles deviam estar “matando jacaré a beliscão”, mas... Quanto tempo que eu não ouvia isso, gente!
No lado direito, havia um bem menor, onde ficavam as moças e senhoras. Próximo a ele, mais ou menos em seus fundos, ficava a quadra, onde tudo aconteceria. A previsão era de que começaríamos o trabalho às 14horas, mas o pastor se delongou... Enquanto isso, nós observávamos as “moças”, muitas grávidas, outras com bebês recém-nascidos... também vimos senhoras, bem mais velhas do que nós.
Por volta de 15 horas, “na quadra de esportes”, distribuímos aleatoriamente uma bola para cada mulher e as agrupamos, conforme a cor. Cada uma de nós e mais uma funcionária chamada Leila, assumimos um dos 04 grupos, e com elas começamos a conversar.
A seguir, nós formamos um grande círculo e ao som do “Bolero de Ravel” rodamos para a direita, para a esquerda.... Em dado momento, distribuímos dois papéis e uma caneta para cada uma. Pedimos-lhes que num deles elas escrevessem a coisa que elas mais queriam e colocassem no lado esquerdo do soutien. No outro, anotassem aquilo que mais as incomodavam e de que elas gostariam de se livrar. Nesta hora, nós descobrimos que muitas, simplesmente, não sabiam escrever, então nós fomos as suas escribas. A maioria dos que eu escrevi por elas foram, respectivamente:: “Eu quero a minha liberdade” e “A prisão!”
A seguir, nós as instruímos para que dobrassem bem o segundo papelzinho, colocassem-no dentro da bola, soprassem-na, amarrassem-na e segurassem-na entre os dedos indicador e médio da mão direita. Ao microfone, eu pedi-lhes que dessem as mãos, formando, uma vez mais, a grande roda, e que fechassem os olhos.
Usando meus conhecimentos de PNL, comecei a falar-lhes coisas boas, usando linguagem hipnótica. Enquanto isso, Jussara manejava o aparelho de som e soltava a música Carmina Burana” (O Fortuna) e Jonisete colocava sobre o centro do círculo uma mesa, sobre essa uma grande panela de barro e dentro dela carvão e álcool gel. Rapidamente, após riscar o fósforo, as labaredas laranjas apareceram, trazendo ao ambiente uma imagem mística.
Em dado momento pedi que elas abrissem os olhos, estourassem as bolas, recolhessem um papelzinho (mesmo que não fosse o delas), que se dirigissem à “pira” e ali colocassem os seus “sofrimentos”. A música atingia os seus mais altos acordes... Emocionadas, em lágrimas, elas procederam conforme eu lhes pedira.
No meio da catarse, eu e minhas amigas percebemos que a mesa de plástico derretia sob a panela de barro em chamas. Rapidamente, pedi que as mulheres voltassem a fechar os olhos, Jussara aumentou o som, e eu e Jonisete corremos para tentar evitar o “desastre”. Não pense que foi fácil, pois o calor das labaredas chamuscava nossas sobrancelhas e nossas mãos.
Por sorte um sargento que a tudo assistia nos socorreu; rapidamente, sumimos com tudo que nos afligia e a equipe re-arrumou o cenário. Quando eu voltei a lhes pedir que abrissem os olhos, elas devem ter pensado que éramos mágicas: no lugar do símbolo do sofrimento delas, estavam os presentes que havíamos levado.
Vimos os olhos brilhantes de lágrimas, se transformarem em alegria... Então elas foram para o lanche e nós, com as almas muito leves, voltamos para casa, ansiosas para abraçar nossos entes queridos.
Nada disse às minha amigas, mas em minha cabeça veio o verso de uma antiga canção: “sempre fica um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas”. E ele eu sinto até hoje.