Diário número 5
Ontem não deu para escrever. Registrei apenas a data, a hora e nada mais. Um sujeito, um senhor de seus 50 anos, mais ou menos, sentou ao meu lado. Trabalha na mesma firma e mora no mesmo bairro que eu. Puxou conversa, mas eu estava a fim de ler Re¬lações perigosas, livro que deu origem ao belo filme de Estephan Frears, Liga¬ções perigosas, respondia com frases curtas como se dis¬sesse: Por favor, deixe-me aproveitar estas poucas horas que tenho para ler. Parece que ele entendeu. Encostou a cabeça no vidro da janela e pu¬xou um ronco, isto é, um cochilo, sim cochilou, porque no ônibus só dá para cochilar. Tem sujeito que já vi, e eu mesmo já passei por isso, caem num pro¬fundo cochilo que chegam a ba¬bar, ou volta e meia batem a cabeça no vidro da janela. Eu me enfronhei nas cartas do Vis¬conde de Valmont, da Marquesa de Merteuil, de Cecile de Volanges, do Cavaleiro Danceny, da Presidenta de Tourvel, da Sra. de Volanges e, me desliguei. Como sem¬pre o ônibus lotado, mi¬nha atenção era de vez em quando desviada, pois os falatórios, as discussões por causa do troco ou da turma do licença por favor e não empurra, fa¬ziam com que meus olhos se desvias¬sem das saborosas letras do romance. Mas não fui interrompido, a cada letra, palavra, frase que lia, re¬via a beleza rica do filme. Pare¬cia que estava assistindo novamente. Quando decidi parar de ler e peguei o caderno para escrever, o meu companheiro de viagem acordou e come¬çou a falar. Dessa vez não pude fugir da conversa. O livro es¬tava fechado e o caderno não ti¬nha sido ainda aberto, pareceu-me que esperava o momento para abrir os olhos. Me dei¬xei le¬var e fomos conversando até o momento em que nos separamos. Aí despedimo-nos, ele foi para a direita e eu para a esquerda. Tinha intenção de registrar mais uma vez meus sentimen¬tos e não pude. Droga!