Sua santidade, a violência

Sua santidade, a violência

Quantos ainda terão que pagar com a própria vida? Quantos ainda terão que abotoar o paletó de madeira e engolir terrar para que algo de concreto possa ser feito e amenizar a vida daqueles que ficam e nem podem chorar a dor da perda dos seus entes queridos?

A bola da vez, sua santidade aquela que tem o poder da decisão. A que dita às regras, traça os planos e inchada de orgulho, segrega, extermina, dilacera, aparta e cresce a cada dia. Seja nos pequenos ou grandes centros é sempre estampada, a vista, divulgada.

Para os que ficam a dor da partida, da vida encerada antes mesmo de ter sido principiada: "Eles chegaram e bateram na porta, quando abri, invadiram minha casa e meu filho que dormia na rede, na sala, foi picotado a bala", "Na calada da noite, seu moço, ainda cedo e eu nem tinha fechado a janela quando o meu menino vinha a pé e só deu tempo virar a esquina, foi pego de quina e a bala acertou de cheio o coração dele e o meu em grito explodido",” Na calada, seu moço, na calada madrugada, e eu pensei que fosse o toque do celular, mas era os gritos das balas, erraram o alvo, mataram meu caçula que não tinha a ver com nada",” Na calçada de casa, chegando da escola e ainda nem era homem formado, era um garoto de quinze anos e mataram como se mata um bicho, se quebra uma coisa, algo que não vale nada".

Nas telas da teve as imagens dos corpos expostos sem qualquer pudor ou consentimento, ali, os corpos cobertos de sangue, terra e marcas da violência desenfreada e as lágrimas derramadas pelos que ficam a velar e enterrar os corpos, a divulgação pela tal liberdade de imprensa assegurada pela Constituição: "Mais um presunto desovado...", "Um indivíduo em estado de putrefação...", "O boy tinha os pés e as mãos amarrados...", "Arrancaram os olhos para não se espantar com a claridade do inferno...", "Hoje o caldeirão do maldito tem o que ferver...".

Na imprensa escrita, a coisa apelada, as frases ditas, escritas e os nomes que nem a família conhecia. Esquecem-se dos nomes de batismo, se conhecem os apelidos dados pela vida. Boy, boy, boy... E a dor dos que ficam e se sentem maculados, invadidos, desrespeitados. Não se pode chorar, não se podem acender as velas; não se pode dizer do amor que sente porque não se deixa, não se entender que por mais mal que tenha feito há sangue que liga, corre nas veias, pulsa, bombeia. E qual pai ou mãe, amigo, parente, aderente, agregado deixa de gostar por motivos tortos?

Nas rádios as expressões de horror e desabafos: "Já vai tarde, antes tu que eu", "Eu não sinto é nada, fez por merecer", "Pena? Não sou nem galinha", "Azar o seu, sorte a minha", "Eu já esperava, herdou o sangue ruim do pai", "Esse já foi, agora só falta o irmão", "Espero que venha buscar mais algumas da laia dele", "Tanto mal que tu me fizeste, agora veja só, veja só...”.

Veja só a que ponto é chegada à sociedade que dividida só se sente acuada diante da Sua santidade, a violência.

Quantos já foram, jovens, tão jovens e entregues a uma vida sem propósito, objetivo, garantia de vida futura. Entregues a uma prática sem pátria, sem lei, estado ou nação. Um código de horror, miséria e sangue cujo eixo norteado é salve-se quem tiver sorte e morra quando chegar a sua hora.

Na rede aberta conectada, os sites na busca desenfreada de chegar primeiro, de informar primeiro, de ser o primeiro e até fazer as apostas de quantos serão por fim de semana. Sem apontar, dizer ou mostrar setas ou diretrizes lógicas que possam ao menos amenizar luta tão desigual.

Os mais exaltados achando ser a culpa só do governo e da falta de segurança e políticas públicas. Os religiosos nas pregações da falta de um Deus e todos ateus diante do quadro grave de violência, impotência saída para vida tão atormentada, fragilizada e desacreditada.

Sua santidade, a violência... A única impune, a que não sente, é sentida; a que não é agredida, agride; a que resiste, persiste e encontra abrigo no meio humano, nos corações dos homens, no aliciamento dos menores e na dor das mães, pobres mães que veem seus filhos expostos, jogados, mortos como se mata bichos, coisas, algo...

Quantos ainda? Quantos?

Nesses minutos que escrevo ouço barulhos, ruídos, pânico.

Não sei, não sei se ligo a teve, o rádio, a página do jornal ali esperando, ou se vou à janela e espio um pouco para qual lado. Ai, uma tremedeira no bolso da camisa, que cor é essa escarlate, dormência, nossa, sangue, é sangue... SOCORROOOOOOOOOOOOOO