História Dramática de minha família
Conto esta história, amigos, pelo inusitado, pela conspiração do destino que me fez tornar-me amigo do Lauro.
Estou no segundo ano do antigo Curso Clássico, correspondente ao Científico. Ainda não havia notado o sobrenome de um colega de nome Lauro. Nessa época de adolescência quase irresponsável o rapaz não se preocupa muito em saber sobrenome dos colegas e muito menos de saber histórias de famílias.
Apesar desse desinteresse, meu velho pai fazia questão de contar histórias de famílias e uma das histórias favoritas era sobre os Dantas.
Pois bem: sabia eu, de tanto ouvir contar, que os Dantas e os Pessoa Cavalcanti tornaram-se inimigos depois do famoso assassinato do João Pessoa, Governador da Paraíba. João Pessoa, que iria se tornar, face sua trajetória política fulminante, futuro Presidente da República, foi morto exatamente por um membro da nossa família, João Dantas.
Os dois, o assassino e o assassinado eram amigos. Mas, vítimas de uma sórdida intriga feita pelos jornais da época, deixaram de ser amigos. Em uma publicação de jornal, gente do João Pessoa acusava o João Dantas de ter uma amante, que se chamava Anayde Beiriz, poetisa e feminista, o que causava escândalo naquele tempo. Foram publicadas cartas amorosas de Anayde. Vidas íntimas devassadas na imprensa! Época de moralismo furioso e intransigente, principalmente no Nordeste “da peste”. Os historiadores dizem que foi a maior "cafajestagem" que já se viu na Paraíba.
João Dantas era advogado, paraibano como seu até então amigo João Pessoa, não viu outra saída para “lavar” sua honra, senão matar João Pessoa, o que fez, ao invadir a Confeitaria “Glória” , em Recife, onde se encontrava João Pessoa, no dia 26 de julho de 1930. Soube-se depois, segundo meu pai, que esta cafajestada não foi autorizada e nem era do conhecimento de João Pessoa. Mas o mal já estava feito.
João Dantas foi preso e seviciado na prisão, tendo seu órgão genital arrancado, morrendo em intenso sofrimento . João Dantas e Anayde foram apresentados como vilões, face o prestígio de João Pessoa. Na verdade, hoje se sabe que os dois foram vítimas de sórdida intriga e difamação. O fato foi tão marcante, que acelerou a chamada revolução de 30, capitaneada por Getúlio Vargas. Este tema doloroso foi objeto de filme, dirigido por Tizuka Yamasaki, uma conhecida cineasta japonesa, que achou o episódio muito interessante e importante na história recente do Brasil.
Agora, posso reatar o fio da meada da minha história pessoal, voltando a falar do meu colega e amigo Lauro, lá no Colégio Mello e Souza, cujo dono era o famoso Malba Tahan, ilustre matemático.
Pois bem, amigo leitor, depois do assassinato, as duas famílias, os Dantas e os Pessoa Cavalcanti viveram por longos anos uma história de horror. Os Pessoa Cavalcanti juraram matar todo ano um Dantas, que era, adredemente, escolhido para morrer.
No ano seguinte ao fato que narrei, sucintamente, é morto o primeiro Dantas.
Em represália, no ano seguinte, um Dantas mata um Pessoa Cavalcanti. Assim, por muitos e muitos anos, as duas famílias iam se matando. Num ano, um dos Dantas, no outro, em represália, um Pessoa Cavalcanti morria. Esta história macabra parou quando estava escalado para morrer o meu primo Tobias Dantas. O Tobias, para não morrer, fugiu da Paraíba para o Estado do Pará. E as perseguições e mortes cessaram, de ambos os lados.
Foi um grande susto quando tomei conhecimento que meu colega Lauro, depois de tantos anos de carnificina, chamava-se Lauro Pessoa Cavalcanti.
Felizmente, para nós, essa história sinistra e muito real teve um final feliz.
Criando coragem, embora com receio de algum ressentimento, abordei o assunto com o Lauro, que tinha perfeito conhecimento do que acontecera no passado com nossas famílias. Sabia detalhe por detalhe, exatamente como eu sabia.
Achamos muita graça dessa ignorância, que fez correr tanto sangue de nossas famílias. Abraçamo-nos demorada e fortemente. Com muita emoção, selamos mais firmemente nossa amizade. Nós, inocentes de fato tão lamentável e trágico, de maneira indireta, depois de tanto tempo passado, mostramos que sempre podemos perdoar a inconsequência de atos dos nossos antepassados e prosseguir na vida mais amadurecidos.
Naquele nosso abraço fraternal, tenho certeza que João Dantas e João Pessoa Cavalcanti aprovariam o gesto daqueles dois rapazes, no começo de suas vidas, em outra atmosfera e outro tempo, e que, com essa bonita atitude, resgatavam a antiga amizade dos dois Joões, vítimas, não tenho dúvida, de circunstâncias adversas e de uma política das mais primárias praticada naquela época longínqua. Meus antepassados toparam com esta enorme pedra no caminho, mas que serviu para lapidar o espírito das novas gerações.
Às vezes me pego pensando se não está aí a origem da minha total aversão a qualquer tipo de violência e repulsa até mesmo das punições que tanto pedimos, mas que me parecem primárias e até selvagens.
Sonho por novas mentalidades!