MAL AGRADECIDA

A prima da capital chegou criticando a cidade caipira. Reclamava da ausência de bons restaurantes, de farmácias vinte e quatro horas, de postos de combustíveis em que os frentistas trabalhassem mais e falassem menos, de garçons profissionais, de semáforos mais céleres, de supermercados com menos filas, de bancários que se preocupassem com o horário alheio, de taxistas que soubessem que transportavam clientes e não amigos de infância com os quais comentavam os problemas pessoais, de policiais bilíngües, de livrarias equipadas...

Sabendo das frescuras da prima da capital, a prima do interior contratou duas faxineiras: uma fez a limpeza pela manhã; a outra saiu antes das cinco da tarde. Às cinco horas, a prima da capital bateu palmas. A do interior abriu a porta numa falsa cara de felicidade, desceu dois degraus que desembocavam no pequeno acesso da casa à calçada.

Assim que se sentaram, a prima da capital passou os olhos pelos móveis, pela decoração, pela televisão, pelas cortinas brancas, pelo tapete colorido, pelas revistas organizadas em cima da mesa de centro:

- Parabéns! Disse em tom sincero. Você é a primeira pessoa da família que visito que mantém a casa organizada. Passei na casa de sua irmã e no apartamento de sua mãe. Um horror! Não sei como sua irmã pode morar naquela pocilga! A casa sempre empoeirada! E sua mãe? Como vive com tantos cachorros? Chega a ter o mesmo cheiro dos animais!

A prima do interior engoliu em seco os comentários, entrou na cozinha e trouxe uma bandeja, duas xícaras, um bule, um açucareiro, uma faca, bolachas doces e salgadas, pãezinhos, manteiga e geléias. As xícaras, a bandeja, as colheres e a faquinha completamente impecáveis.

A prima da capital inicialmente comeu duas bolachas doces, cinco bolachas salgadas. Avançou sobre os pãezinhos, aplicou duas gordas colheradas de geléias diversas, bebeu um pouco de café para desentalar, voltou aos pães e espalhou generosamente a manteiga importada, comprada dias antes numa casa de produtos caros da Avenida Coronel Marcondes.

- Olha, prima, disse a da capital, interrompendo-se para retirar com a língua um pedaço de comida preso entre os dentes do fundo. Eu gosto muito de você, de nossa família, de nossos amigos caipiras, mas você sabe que algumas verdades precisam ser ditas e, quando essas verdades precisam ser ditas, sou eu a encarregada de transmitir as notícias bombásticas.

Interrompeu o discurso, bebeu um pouco de café, não resistiu ao pãozinho que sobrara na cesta, deslizou novamente a faca espalhando generosa quantidade de manteiga, engoliu em sete mastigadas:

- De modo que, eu preciso, não gostaria, entretanto preciso falar sobre seu marido.

A prima do interior arregalou os olhos, o coração disparou, um suor frio escorreu pelo pescoço, a boca secou: uma amante? Escalaram a pretensiosa e medíocre prima da capital para darem a notícia? Como nunca desconfiara? A que horas a encontrava? Treinos de futebol e churrasco com os amigos? O cansaço freqüente, a falta de disposição e de paciência, o descaso com os problemas domésticos? Devaneios com a outra?

- Pode falar. Estou preparada. Para o que der e vier. O que tem meu marido?

A prima da capital olhou para os lados, baixou a voz, como se quisesse contar um segredo de Estado. Pegou a cestinha vazia, lamentando o fim dos pãezinhos pelos quais se encantara.

- Acho que ele não é o homem ideal para você. Você concluiu o ensino médio, vamos concordar que não é lá grande coisa, mas pelo menos tem algum estudo. Esse aí nem supletivo quer fazer, faculdade muito menos! Pensa que a vida é churrasco e futebol? Vivendo de um salário que mal consegue pagar as contas no fim do mês? Ou você acha que já não sei que estão com a corda no pescoço no cheque especial e no cartão de crédito? Fiquei sabendo que até as lojas telefonam regularmente para cobranças de parcelas de meses atrás. Então acho, sinceramente e com todo respeito, que precisava arrumar coisa melhor. Você é ainda muito jovem e pode encontrar...

A prima do interior fez o que os demais parentes gostariam: expulsou a prima da capital aos solavancos, safanões e chutes.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de abril de 2011.