91 ANOS

Hoje, dia 7 de julho de 2006, fui fazer uma visita a uma senhora que completava 91 anos de vida.

Mas nunca pensei que depois de uns vinte minutos apenas na humilde casinha dela pudesse sair de lá tão arrasado e deprimido com o que vi. A impressão é que uma força destruidora se apossou de mim me derrubando, passando por cima, me amassando e quebrando todos meus ossos, ficando eu como se fosse uma gelatina, todo mole, sem nenhuma estrutura esquelética capaz que pudesse me fazer reerguer.

Estava ela sozinha, magra, famélica, esquálida, corcunda, com a visão turva, a memória em frangalhos e a audição sofrível, as juntas ósseas doloridas. Sendo viúva já há um quarto de século, era do tempo de um amor só na vida, pelo que resolvera enfrentar o resto de seus dias na solidão sem nunca sequer pensar em buscar a parceria de um novo companheiro, que pudesse lhe mitigar a ausência do carinho humano de seu antigo esposo.

Morando com o único filho, de sessenta e poucos anos, doente mental, excepcional, amnético, com dificuldades de falar, quase imóvel por problemas musculares, e o pior, casado com uma esquizofrênica, louca, descontrolada mental, daquelas de se tomar cuidado, pois quando menos se espera se bota de unhas e dentes nas pessoas quando está descontente com as coisas, lá estava aquela senhora fazendo 91 anos de idade.

Seu marido trabalhou com meu pai há quase meio século quando aqui chegou a esta cidade. Era de um carinho, uma educação e uma atenção que nunca vira antes em nenhum homem da fronteira. Era a gentileza em pessoa, e me lembro muito bem, pois eu tinha apenas 10 anos de idade, quando ele atendia no bar aos bêbados incomodativos e chatos, como ele era atencioso e carinhoso com aqueles desvalidos. Era como se fosse um irmão mais velho de todos eles.

Pois lá estava a aniversariante não se lembrando de mim, chamando minha mãe por outro nome, esquecendo-se de sua própria data natalícia naquele dia.

O irônico da amnésia se fez presente nesse fato que me deixou muito triste.

O cachorro que passeava entre eles na sala era-lhes desconhecido, não sabiam de quem era, havia aparecido por ali, e como tinha sido roubado o deles, resolveram ficar com ele, até que o verdadeiro dono, provavelmente algum vizinho descuidado, fosse reclamá-lo. Contudo, isso certamente não tinha a mínima importância.

O que mais pesava como deveras importante em toda aquela cena quase macabra era que os três estavam ali, amontoados, à espera da morte, na certeza de que ela seria o maior prêmio da vida deles, em face à circunstância daquele negro cotidiano.

Sem parentes, sem assistência, sem condições razoáveis de sustentabilidade, eram figuras vegetativas, meros objetos, que a qualquer momento estariam sendo encerrados em uma caixa escura, indo pro fundo da terra, talvez redimidos pelo pavor, pra quem sabe ganhar a redenção.

Ela me carregou no colo, cuidou de mim quando criança; foi como uma avó para mim, enfim, afinal já convivemos há uns 40 anos. E agora, me pergunto pelo sentido da vida nessas circunstâncias vividas por ela.

É num momento como esse que a gente se decepciona com a dignidade que a eles é negada por Deus, pela vida, pelo Estado, por nós, pela nossa omissão em nem sequer nos preocuparmos em lhes garantir o mínimo de decência nos momentos derradeiros de sua existência.

Não são os únicos a sofrerem essas privações, porém isso me tocou a fundo por, principalmente, ela, 91 anos, ter, duma maneira indireta, participado de minha vida.

Não há nada que me console agora, tanto que nem essa reflexão me alivia o estado de angústia em que me encontro, cuja dilaceração psíquica me revoltou ao ponto de maldizer a própria vida.

Em: 07-JUL-2006

Djalma
Enviado por Djalma em 21/04/2011
Código do texto: T2923011
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