COMO EU VIM AO MUNDO

Melhor seria em minha vida até agora (e olha que já se vão anos e anos, de tempos de vacas magras e gordas, de tempos encontrados e desencontrados, de momentos felizes e infelizes, de angústias e de satisfações) se eu não tivesse tido essa capacidade de consciência, esse ponto de reflexão como item importante em minha personalidade, astuta e sagaz capacidade de ver e rever, pensar e refletir as coisas de meu tempo, de meu passado e de meu futuro, pois dominado pelas trevas da ignorância que seria a tônica de meu ser ao invés desse entusiasmado juízo de valor sobre os fatos, com certeza seria menos infeliz, provavelmente encontraria mais facilidades para abrir portas e janelas mundanas em busca da felicidade, pois do jeito como sou e como estou, elas não se abrem num piscar de olhos da mesma forma quando vivemos alienados das informações, já que elas trazem o poder de mudar as coisas ao nosso redor, só que meio que tardiamente percebo que mesmo assim não posso mudar as coisas com toda a informação de que disponho no que diz respeito ao passado, nem o meu, nem o de ninguém. Resta, então, o caminho da resignação, pois quando esse passado ocorreu, nós não estávamos presentes para que nossa opinião fosse avaliada e nosso desejo considerado e levado em conta. No final, é isso o que mais me machuca. E não tem como o pensamento fugir de nossa mente pra deixá-la aliviada, como se depois da tempestade, as nuvens fossem embora e o céu se abrisse novamente, clareando toda a escuridão que nos trouxe medo momentaneamente.

Faz apenas quatro meses que minha mãe se foi desta dimensão da vida pra uma outra, e sou levado a crer que é assim que aconteceu, por medo de pensar no vazio existencial de nossa criação e morte física.

Vivendo com ela, sob o mesmo teto, durante um ano e oito meses até seu passamento final, e depois de quatorze anos longe dela, mas sempre a visitando regularmente entre três e quatro vezes ao ano, afora os contatos telefônicos, pude observar no dia-a-dia o sofrimento que carregava em si, porém mitigado pela fé religiosa que lhe sustentava magistralmente, a angústia existencial que ela carregava e que marcava profundamente sua alma (?), decorrente de coisas acerca de meu pai, e foi aí, nesse ínterim, que pude entender como foi processada minha vinda a este mundo. Compreendido isso, um choque me correu pela espinha, como se eu houvera sido apunhalado na coluna vertebral e minha carne arrancada a golpes duma lâmina afiada e assassina, que sem dó nem piedade tentava me fazer voltar ao buraco negro que era antes de meu gestar. Seria bem melhor que eu não tivesse sabido de nada disso, viveria alheio e não me martirizaria tanto como faço agora, questionando o estado das coisas, do qual eu não fiz parte, pois só fui jogado nele contra uma vontade que ainda não me era expressa.

Minha mãe, lindíssima quando jovem, oriunda lá dos barrancos de São Nicolau, filha de meu avô Dejalmo, saiu de casa lá pelos idos de 54 pra estudar magistério em Cruz Alta, pertinho de Santa Maria, cidade que recebia as filhas dos estancieiros e fazendeiros abonados da região Sul e Oeste do RS. E sempre que ocorriam bailes em Cruz Alta, os metidos a grã-finos, galãs de meia tigela, pobres, sem emprego, de condições financeiras muito inferiores às das moças da fronteira, subiam a pequena serra, indo caçar as donzelas enclausuradas nos bailes, e finamente trajados, dotados de uma verbosidade tamanha e de uma loquacidade ímpar, lançavam-se às pobres moças, na maioria imensa das vezes que nem sequer levantavam os olhos para encarar seu pretendente para uma dança, e depois de estudadas com riqueza de detalhes, ficavam à mercê dos ataques dos sanguessugas da fortuna dos pais delas.

Terminados os bailes, sonhavam as coitadinhas com um mundo novo cantado em verso e prosa pelos seus pares, esperando ansiosamente, contando nos dedos das mãos, o dia do próximo encontro, que às vezes levava dois, três meses, uma eternidade sem fim, que machucava e derretia os corações emocionados.

E assim eu já estou quase entrando na história pra qual não fui convidado nem por decência nem por consciência dos que a fizeram antes de mim, e que me deram o legado que é esse fardo que carrego comigo, sem saber como me livrar dele.

Meu pai, servente da Caixa Econômica Federal, limpador de vidros e servidor de cafezinho (e isso não é posto aqui com demérito), como tantos outros, viu a grande oportunidade que era a de freqüentar esses bailes de Cruz Alta, e lá, depois de traçar um plano, cercou-se de minha mãe e deu o golpe da vida dele, pois afinal já estava com quase trinta anos de idade, não tinha nada em termos materiais, era quase um joão-ninguém, e o baú da felicidade estava se lhe abrindo. Tinha era que traçar as linhas corretamente pra aplicar a manobra com maestria, que foi o que acabou ocorrendo.

Muito tempo depois, vim saber que meus avós Dejalmo e Docelina, pais de minha mãe, alertaram-na, entretanto, a pobrezinha, já estava enfeitiçada e o futuro mal delineado, sem que soubesse. Nada mais iria alterar isso na escolha que foi feita, como de fato nada mudou, exceto, pelo fato de que a angústia e a amargura provocaram pelo arrependimento, mas aí, já era tarde demais. O peixe fora fisgado e o futuro era a panela e a vontade irresistível de comê-lo, saboreando-o com os temperos devidos da nefasta conquista.

Como eu vim ao mundo? Foi assim... É deprimente, pelo jogo de interesses e pelas mentiras cercadas de hipocrisias, de fingimentos mil, nesse palco que é a vida com cada um representando o seu melhor ou o seu pior.

Que vida é essa que me deram? Não aceito essa linguagem que falam... Suas palavras são mera retórica, que sempre enganam os ignorantes... Sobre meus irmãos? Eles são produtos do mesmo lixo cultural egresso de meu pai, afinal carregam em si a carga genética indefectível de propagação desses malditos genes da enganação, que fico feliz em me dar conta de não ter comigo, e em meio a um misto de sofrimento e alegria, acabo me extasiando existencialmente, porque a morte de minha mãe me trouxe a capacidade de resignação, já que antes era só de indignação. Se isso é certo ou errado, eu não sei, contudo penso que só o tempo, o senhor verdadeiro da razão dirá.

Como eu vim ao mundo? Foi assim...

Em: 26-DEZ-2006

Djalma
Enviado por Djalma em 21/04/2011
Código do texto: T2922994
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