Meu caminho com Drummond
Fazia pouco tempo que eu havia me mudado para Catalão e eu ainda não estava muito acostumado a viajar por essas bandas. Seria na cidade de Coromandel a reunião dos líderes de jovens que eu participaria.
Sabe-se lá onde, neste mundão mineiro, ficaria a tal cidadezinha de Coromandel. O pessoal todo que participaria iria direto de Uberlândia, em ônibus fretado. De Catalão, somente eu.
Preparei-me para a viagem como sempre fiz, usando o bom e velho Google Mapas. Afinal, o que seria de nós sem o Google?! Não precisamos mais nem salvar os sites nos favoritos! É só “jogar no Google” e pronto!
Mas voltando ao causo, tracei a rota da viagem no Google Mapas, com as cidades intermediárias (ainda menores) até chegar ao destino final. O site dizia que seriam 130 km em quase duas horas de estrada. E segui viagem feliz e tranquilo, no meu carro novo.
Só no meio do caminho que fui descobrindo as informações que o Google Mapas NÃO forneceu...
Eu estava acostumado com rodovias em que, ao se passar por uma cidade, é possível continuar seguindo viagem pelo mesmo caminho ou então pegando um cruzamento, rotatória, trevo, ou seja lá como quiser chamar. Isso tudo muito bem sinalizado com placas informativas.
Porém a estrada morria na entrada da cidade, e sem placas. Era domingo bem cedo e achar um cidadão na rua já foi “custoso”, imagine então achar um cidadão que soubesse a informação. Encontrei no máximo um que disse: “uai, sô, EU ACHO que é logo ali...” Fui na fé mesmo. E por sorte, minha fé estava correta.
Outra grande descoberta: parte do trecho a ser percorrido era de terra. Nada menos do que 60 quilômetros no areião vermelho, eu e meu carrinho recém-comprado zerinho. Resultado: na ida ele era prata, na volta vermelhinho.
Claro que as janelas estavam fechadas. Primeiro, na tentativa de evitar a poeira. Mas depois foi de medo mesmo, quando vi que ao redor da estradinha de terra só tinha mato, uma árvore aqui outra ali, ninguém passando, e mais ainda: o celular não pegava!
Não dava pra correr muito: por causa da nuvem de poeira, dos buracos e pedras do caminho. Ah, caro Drummond, como lembrei-me de ti e das tuas pedras...
“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.”
É, pode ser que no caminho do Drummond tinha “uma pedra”, mas no meu tinha milhares de pedregulhos... Havia também muitas pontes, ou melhor, mata-burros que surgiam no nada. E como eram estreitos!
Mal eu acabava de xingar uma dessas míseras passagens, chego à margem de um rio. Depois descobri que era o rio Paranaíba, que divide os estados de Goiás e Minas, ao norte do Triângulo Mineiro. E diante do rio, vejo que não há ponte. Por que é que fui reclamar da estreita pontezinha que passei minutos antes...
Como é que eu faria para atravessar o rio Paranaíba? Não havia outro caminho pela margem. Teria que voltar? Fui enganado pelo Google Mapas? E agora, José? Lembrei-me mais uma vez de Drummond:
“E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
(...)
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?”
Por mais um golpe de sorte, mais próximo da margem do rio, avisto uma caminhonete. Não sei se o homem que estava no volante chamava-se José, mas fui lá perguntar a ele “e agora?”.
Ele me mostrou, ao longe, uma balsa, que deveríamos esperar que chegasse à nossa margem, para que nela atravessássemos o rio. Era uma pequena balsa movida pelos braços magros de um homem que puxava um cabo ligando um lado a outro.
Diante da minha cara de espanto e das diversas perguntas que fiz àquele “José”, ele até me perguntou de onde eu era, com ares de graça. Como paulista interiorano, eu nunca havia atravessado meu carro a balsa.
Foi uma experiência muito interessante. Já que o celular não pegava, pelo menos serviu para registrar em fotos aquele momento irreverente.
A balsa era uma pequena plataforma composta por algumas tábuas de madeira justapostas, com muitos buracos. Dava a impressão que elas eram suportadas por tambores vazios amarrados unicamente com cordas. José, com sua companheira, conduziu a caminhonete na minha frente e eu dirigi logo atrás; carros, passageiros e tripulante sobre a balsa.
O rapaz que a atravessava era mal encarado, calado, com o rosto afundado em tanta magreza. Quando contei essa história ao meu irmão, ele apelidou esse rapaz de “Caronte”, o barqueiro mitológico que faz a travessia das almas pelo rio Aqueronte até o local em que lhes é destinado. O Caronte também aparece na Divina Comédia, de Dante Alighieri, entre o vestíbulo e o primeiro círculo do Inferno.
Precisei fazer todo esse trajeto na ida e na volta, tendo o cuidado de não retornar antes do anoitecer, pois esse Caronte aí trabalha somente à luz do sol.
Naquele dia, passei apuros e temores, mas pelo menos me rendeu história pra contar...