O bicho homem
Vi um homem revirando a lata de lixo, na rua quase deserta da manhã, absorto no papel que desempenhava: catar algo para comer.
Lembrei-me de Bandeira, que disse:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Há tempos que os bichos perderam seu lugar no revirar do lixo. Hoje o homem faz o trabalho do bicho. Hoje o homem é o próprio bicho no lixo.
A cena tornou-se corriqueira nas ruas da metrópole. Não é uma rosa que vejo brotar do asfalto. O que vejo é a dignidade do homem ir ao fundo do lixo.
E o homem se multiplica, pois vários buscam o alimento no lixo. Matar a fome que grita silencia o próprio grito que, mudo, perde-se aflito.
Não há poesia na imagem que vejo, mas tento buscar nas palavras o que talvez ninguém perceba, pois o homem no lixo tornou-se invisível aos olhos dos que passam. Anestesiamos os sentidos e fingimos que o homem não garimpa o lixo. Não é ouro o que procura. São restos do prato de um outro homem o que busca esse homem no lixo.
Posso compará-lo com o abutre. Novamente o homem toma o lugar do bicho. Do bicho na imundície do próprio lixo.
Rita Venâncio.